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joão pereira coutinho

 

29/10/2012 - 07h00

Santa Ciência

E o anedótico aconteceu: sete cientistas italianos foram condenados a seis anos de prisão. Motivo?

Foram incapazes de prever o terremoto de Áquila, em 2009, que matou mais de 300 pessoas. "Homicídio culposo", decretou o tribunal: antes do terremoto propriamente dito, vários tremores de baixa intensidade tinham assolado a região. Os cientistas deveriam ter feito "mais".

O quê, por exemplo?

Ninguém sabe. Nem sequer a ciência: vários geólogos foram consultados durante e depois da sentença. O pasmo e a indignação eram gerais: não é possível, cientificamente falando, prever com rigor um terremoto. Como é possível a um tribunal de um estado democrático condenar a ciência por ser incapaz de fazer o impossível?

Boa pergunta. Infelizmente, ela ignora o espírito do nosso tempo: um tempo que não aceita a inevitabilidade de qualquer desastre natural; um tempo que procura sempre falhas humanas, demasiado humanas, para explicar o imponderável.

De certa forma, continuamos em pleno século 18, repetindo velhos argumentos com roupagens novas. Em 1755, por exemplo, Lisboa foi devastada pelo Grande Terremoto. A hecatombe representou o início de uma discussão filosófica que percorreu a Europa religiosa e letrada.

Para os religiosos, o terremoto era um castigo divino destinado a punir a licenciosidade dos homens. O italiano Gabriel Malagrida (1689 - 1761) foi um dos rostos mais fervorosos desse fervor: o sismo tinha sido um castigo, sim, mas era apenas um primeiro aviso. Os homens que se preparassem para o verdadeiro Juízo Final - e que se arrependessem dos seus pecados entretanto.

Para as inteligências seculares, com Voltaire à cabeça, o terremoto era o oposto: a prova acabada de que Deus não existia. Ou, se existia, não passava de um demiurgo cruel, entretido a esmagar as suas criaturas.

No debate sobre o Grande Terremoto de Lisboa, cada um aproveitou a desgraça para cavalgar os seus próprios preconceitos ideológicos.

O que poucos fizeram foi aceitar o básico: que Lisboa tremera; que o mar engolira a cidade; e que os incêndios destruiram tudo o resto.

Passaram 250 anos. Mas o progresso material do Ocidente não eliminou da nossa cabeça hominídea a necessidade de encontrar uma causa que tudo explique e justifique. E se Deus é um luxo a que não nos podemos permitir, como dizia um personagem célebre de Woody Allen, alguém tem que ocupar o Seu lugar.

E esse alguém somos nós, homens, herdeiros da técnica e fazedores de ciência. Nós somos os responsáveis pela destruição do planeta. Nós temos a obrigação de o salvar.

E se por acaso um cataclismo natural emerge sem aviso, nós somos responsáveis pela falta de aviso. As religiões tradicionais podem ter recuado como princípio e fim das explicações mundanas. Mas esse trono não ficou vazio. A Santa Ciência (com maiúscula) ocupou o seu lugar.

Hoje, sete geólogos são condenados por não terem evitado o inevitável e por não terem previsto o imprevisível. Amanhã, não será de admirar que os tribunais comecem a condenar os médicos por não terem abolido a morte dos pacientes; ou então os astrofísicos por não terem abolido os meteoritos gigantes e potencialmente fatais.

O ideal, aliás, era condenar já, por antecipação e precaução, a Humanidade inteira. Assim, quando um desses meteoritos aqui chegar, os tribunais não serão culpados por não terem encontrado a tempo alguém para culpar.

Filippo Monteforte-6.abr.2009/France Presse
Policiais inspecionam casas ao redor da sede do governo em Áquila, cidade mais afetada pelo terremoto
Policiais inspecionam casas ao redor da sede do governo em Áquila, cidade mais afetada pelo terremoto
joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

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