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joão pereira coutinho

 

29/11/2010 - 00h01

O caso Monteiro Lobato

A minha infância foi pobre. Televisivamente falando. Não poderia ser de outra forma. Nasci depois da "Revolução dos Cravos", que enterrou a ditadura portuguesa em 1974. A televisão lusa dava os primeiros passos em liberdade e a programação era, digamos, incipiente.

Mas havia excepções. Uma delas era "O Sítio do Picapau Amarelo", uma produção da TV Globo baseada na obra de Monteiro Lobato (1882 - 1948). Lembro-me das aventuras de Pedrinho e Narizinho com a mesma gratidão com que me lembro das aventuras de Lucy ou Edward nas crónicas de Nárnia de C.S. Lewis, que li na mesma idade, teria uns 7 ou 8 anos. Sem falar da boneca Emília, de Dona Benta e da Tia Nastácia. Puro encantamento.

Por causa de Monteiro Lobato, conheci melhor o folclore brasileiro; e, claro, a própria literatura brasileira. Depois da série, li Monteiro Lobato "lui même". E, por causa do autor, fui entrando no cânone.

Primeiro, "O Meu Pé de Laranja Lima", de José Mauro de Vasconcelos, desde logo porque havia um "portuga" na trama. O livro fez um sucesso em Portugal digno de J.K. Rowling. E depois passei a dietas mais pesadas, com Lima Barreto, Nelson Rodrigues. E o notabilíssimo Rubem Fonseca.

O racismo de Monteiro Lobato incomodou-me? Nem pensei nisso. Não penso nisso agora. O que não significa que Monteiro Lobato não o fosse: as suas referências a "pretos" podem ser desconfortáveis para uma audiência moderna. Mas se as audiências modernas apenas lessem o que se ajusta ao cânone politicamente correto do momento, que obras ficariam nas nossas bibliotecas? Precisamente. Poucas. Quase nenhumas. Todas as épocas têm as suas fogueiras.

Por isso pasmo com a decisão do Conselho Nacional de Educação de sinalizar com pânico radioativo e instintos censórios a obra "Caçadas de Pedrinho", publicada por Monteiro Lobato em 1933. O caso já chegou à imprensa portuguesa, que tem dedicado alguma atenção ao assunto. Deveria dedicar mais porque estamos na presença de um exemplo clássico de ignorância cultural. E, ironicamente, de preconceito ideológico.

Segundo leio, o livro "Caçadas de Pedrinho" tem referências que não são agradáveis à população negra. Uma princesa, por exemplo, aconselha Emília a não beber café. Para não ficar "morena". E a Tia Nastácia, que cozinhava os melhores petiscos da minha infância, é referida como "pobre preta".

Isso, para o Conselho de Educação, é intolerável. A função do ensino, para o nobre órgão, é inculcar os valores certos na cabeça das crianças, afastando qualquer ofensa às minorias.

Sou capaz de entender a generosidade do Conselho de Educação. Mas se a função do ensino é afastar do currículo tudo aquilo que ofende a sensibilidade moderna, repito, não fica nada para mostrar.

Apagar o passado que nos interpela com seu rol de ofensas e preconceitos é apagar Platão ou Aristóteles, dois conhecidos esclavagistas com intoleráveis tendências misóginas. É apagar os versos de Dante na sua "Comédia" com passagens islamofóbicas. É apagar Voltaire pelas mesmas razões, a começar pela sua peça "Maomé". É apagar Mark Twain pelos mesmos motivos que nos levam a censurar Monteiro Lobato. É não permitir que Shakespeare nos contamine com seu esporádico antisemitismo. E, por falar em antisemitismo, é jogar no lixo a poesia de T.S. Eliot, o maior de todos os modernistas. E etc. etc. etc. A lista não tem fim.

Avaliar a cultura passada com as lentes ideológicas do nosso tempo não é apenas um grosseiro erro de anacronismo. É vandalizar esse passado pela destruição do mundo que ele expressa; é, no limite, uma privação cultural.

E esse crime não é apenas um crime que cometemos sobre o passado. É também uma porta que abrimos para crimes futuros: para que as gerações vindouras, dominadas por seus próprios valores ou preconceitos, possam usar a guilhotina sobre os nossos valores ou preconceitos; sobre a nossa voz singular e presente; sobre nossos vícios e virtudes; sobre nós. Uma inquisição permanente que não tem descanso.

O caso Monteiro Lobato é mais um exemplo de como o objetivo do pensamento politicamente correto não é "corrigir" o pensamento politicamente incorreto. É criar um mundo de silêncio, transformando o passado num imenso cemitério.

joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

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