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joão pereira coutinho

 

31/10/2011 - 10h27

Três reflexões violentas

AS PESSOAS GOSTAM DE APANHAR. Gostam, não: precisam. Estou em casa, a TV ligada, concursos vários em todos os canais. Cozinheiros amadores em busca do prato perfeito. Cantores do chuveiro em busca da carreira musical perfeita. Comedores pantagruélicos em busca do corpo perfeito.

E, em todos os concursos, os jurados gritam e humilham os concorrentes. Os concorrentes choram, desesperam, alguns desistem. Mas existe em cada choro, desespero ou desistência a marca do alívio e do prazer. Aquela gente nunca se sentiu tão viva e tão válida. Mesmo os perdedores. Como explicar o masoquismo?

Não é masoquismo. Apenas a comprovação empírica da falência da educação moderna. Antigamente, educar era um processo violento que implicava destruir, em casa ou na escola, os instintos de cada ego.

Aprender a comer à mesa; a conversar; a estudar; a imaginar; e até a criar, tudo isso pressupunha - e pressupõe - uma disciplina imposta, feita de estímulos e desafios, derrotas e vitórias.

Hoje, com as teorias "românticas" que dominam as cartilhas pedagógicas das escolas ou das famílias, não há estímulos ou desafios. Precisamente para que ninguém saia derrotado ou vitorioso.

Uma sociedade radicalmente igualitária é isso: uma sociedade mediana, de seres medianos, com vidas e obras medianas.

Não admira que muitos desses náufragos do paternalismo sintam necessidade de participar em concursos públicos para terem o que nunca tiveram na vida. Um pouco de violência instrutiva.

*

GOSTEI DE "CONTÁGIO", O ÚLTIMO FILME DE STEVEN SODERBERGH. Primeiro, porque gosto de filmes apocalípticos, que prometem acabar com a Humanidade. E, depois, porque não gosto da Humanidade: como alguém dizia, só romantiza o ser humano quem nunca dirigiu na vida.

Soderbergh não romantiza. Amigos meus, que vivem com o radar ideológico ligado 24 horas por dia, diziam-me que o filme era "politicamente correcto", denunciando a hipocrisia da indústria farmacêutica na forma como ignora os sofrimentos do Terceiro Mundo.

Discordo. Esse não é o ponto - e o personagem de Jude Law, o jornalista-blogueiro que procura desmascarar essa hipocrisia, é retratado por Soderbergh a tapas e pontapés.

O ponto de Soderbergh, creio, é mostrar como a capa da civilização é fina, finíssima: ela desaparece por completo quando o medo da morte se torna endémico. Esse medo é alimentado por um vírus particularmente letal que vai contaminando o globo a partir da Ásia e que joga o ser humano, essa bela criatura, de volta para a selva - a selva de que falava Hobbes, não Rousseau.

O melhor do filme está nesses contrastes: a normalidade cotidiana que é interrompida pelo vírus e pelo medo; a selvajaria histérica que destrói a coesão social; e de novo a normalidade cotidiana, quando há finalmente uma cura.

Falo da cura para a doença, claro, não para o selvagem que hiberna em nós. O selvagem não tem cura.

*

TEMPOS ATRÁS PASMEI COM UMA NOTÍCIA BRASILEIRA. Aconteceu em Formosa, uma povoação próxima de Brasília. Um homem, cansado de ser assaltado, resolveu montar uma armadilha para apanhar (e matar) ladrões.

Não sei se o personagem em causa teve essa ideia depois de assistir a um filme de Charles Bronson.

Sei apenas que o engenho, feito de fios, um pedaço de cano, uma ratoeira, munições de espingarda e pólvora, funcionou na perfeição. Quando o mesmo ladrão de sempre regressou ao mesmo local do crime de sempre, abriu a porta dos fundos e levou um tiro no peito.

O proprietário não estava em casa no momento sacramental. Hoje, aguarda julgamento por homicídio doloso. Trinta anos de cadeia é uma possibilidade.

Não sei como terminará essa história. Mas será que a Justiça brasileira irá sobreviver ao descrédito total se condenar um homem a 30 anos de prisão por matar o ladrão de sua casa?

Em Inglaterra, por exemplo, tem havido uma certa "evolução" na matéria. O ministro da Justiça, Kenneth Clarke, resolveu agora preparar uma lei que torna mais fácil ao proprietário defender-se de qualquer assaltante que entre nos seus domínios.

Antigamente, a lei aconselhava a que o proprietário apenas fugisse de casa - em pijama, de cueca, "au naturel". A nova lei, que será discutida e votada no Parlamento britânico, permite o uso de "força razoável".

Entendo o conceito. Uma coisa é inutilizar o ladrão com uma pancada na cabeça. Outra é inutilizar o ladrão com uma pancada na cabeça e depois engomá-lo com o cortador de grama.

Mas confesso estranheza e horror quando um sistema judicial, seja no Brasil ou em Inglaterra, coloca a responsabilidade do crime na vítima do assalto, e não no próprio assaltante.

A atitude não é apenas uma desculpabilização abjecta do criminoso. É um convite para que ele continue as suas visitas nocturnas, sempre protegido pela certeza de que o proprietário não o pode matar - e, às vezes, é legalmente aconselhado a largar tudo para o visitante.

Faz lembrar a legislação primitiva de certos países islâmicos: a mulher foi violada? Cadeia com essa vagabunda!

joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

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