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luiz caversan

 

15/03/2008 - 14h19

Um verão qualquer

O céu cinza lá fora e a chuva fina fazem lembrar uma observação de muito, muito tempo atrás: "Nossa, nem parece verão..."

Era a mãe, abrindo a janela para o quintal, deixando entrar o frio e o cheiro de terra molhada. Apenas sentia-se a presença da chuva que já nem mais caía direito, porque a claridade da manhã estavam apenas despontando no horizonte. O pai acabara de sair para a fábrica, e, luzes acesas, a movimentação na casa ia à toda: era dia de ir para a praia!

As malas quase prontas desde a véspera, carecia agora terminar de ajeitar roupas e utensílios, pegar a comida guardada na geladeira, acondicioná-la nas sacolas, reunir as coisas de maneira que mãe, filho pequeno e duas irmãs mocinhas pudessem carregar tudo até o ponto final do ônibus. Ônibus... Na verdade pequena condução de uma única porta dianteira, onde a odisséia rumo ao mar apenas começaria.

A partida se dava da então muito distante Vila Esperança, numa zona leste de São Paulo ainda isolada pela falta de avenidas radiais, metrô ou diversidade de linhas de ônibus. O destino, a mais distante ainda, e de fato verdadeiramente longínqua, Praia Grande, litoral sul de São Paulo.

O pequeno ônibus que saía da Vila Esperança tinha como destino o bairro da Penha, na época centro comercial irradiador do crescimento que começava a se estender para cada vez mais longe da cidade. O trajeto não durava nem meia hora, e isso não era nada; o problema consistia em carregar toda a tralha da família, tralha esta que garantiria a sobrevivência durante um mês de verão na praia não apenas distante como desprovida de estabelecimentos comerciais. Devia-se levar "tudo"...

Fim da linha do ônibus "vira-vira", a parte de que mais gostava começaria agora: o bonde elétrico cujos trilhos partiam do largo da Penha, desciam a ladeira da Coronel Rodovalho em direção à avenida Celso Garcia, por onde iam serpenteando lentamente quilômetros, até atingir o Largo da Concórdia, já na cidade, depois de cortar Tatuapé, Belém, Brás... Adorava o barulho do sino, o ranger das rodas nos trilhos, os bancos de madeira e, sobretudo, o boné do motorneiro.

A confusão do largo da Concórdia era logo deixada para trás das roletas da estação do trem de subúrbio que nos levaria até a estação da Luz, de onde, aí sim, partiria o trem "de verdade", serra abaixo, para Santos, no litoral.

Naquele dia de verão esquisito e frio, porém tudo se atrasou, e a comitiva da zona leste perdeu o trem do meio dia para Santos. Acampados sob os arcos da lindíssima estação da Luz, legado inglês que ainda hoje adorna a cidade de São Paulo, o jeito era esperar o próximo trem, que só sairia horas depois.

E lá vamos nós, então, em direção a Paranapiacaba, na borda da Serra do Mar. Ali a coisa ficava verdadeiramente emocionante, porque o trem não podia descer inteiro a serra íngreme. Era fracionado em vagões, que por sua vez ficavam presos a cabos de aço acionados por uma cremalheira, num sistema que garantia a descida e a subida das composições com eficiência e segurança _mas, obviamente, sem nenhuma rapidez...

Naquele dia chuvoso a neblina da serra era mais densa que o normal, quase não se distinguia a paisagem da floresta (naquele época ninguém sabia o que era Mata Atlântica...), mas a aventura de percorrer os túneis cavados na pedra úmida e escura era a mesma.

No final da serra, todos tinham que esperar até que o último vagão chegasse para, só então, empreenderem o final da viagem, na velha estação de Santos, ainda longe do mar.

Reúne a turma, junta a bagagem, lá vamos todos nós para mais um ônibus, um urbano de Santos, que nos deixava, agora sim, junto ao odor acre e à brisa forte do oceano agitado e escuro da costa paulista. E, finalmente, na divisa entre Santos e São Vicente, juntinho ao mar, começava a derradeira etapa: uma "jardineira" também de porta só na frente nos levaria até Praia Grande, lá para os lados do Campo de Aviação.

Para sairmos da ilha em que fica localizada São Vicente era necessário, no entanto, cruzar a Ponte Pênsil, lindíssima construção que veio desmontada da Alemanha e ali foi fixada em 1914.

A espera pela vez de passar pelo corredor estreito delimitado pelos cabos de aço incrivelmente grossos era compensada pelo delicioso doce de banana que se comprava dos ambulantes locais e também pela emoção que seria causada pelo barulhão dos pneus do ônibus sobre as tábuas que compunham o piso da ponte. Medo e frisson se somavam na mente infantil como se ocorresse, ali, a travessia para um mundo totalmente novo.

E de certa forma era mesmo, porque um quarto de hora depois a jardineira rolava macia sobre a areia batida rés o mar de uma das mais longas praias brasileiras.

Não havia calçamento, portanto a estrada era mesmo o chão molhado e salgado pelo Atlântico, cujo aroma agora já tornara-se totalmente familiar.

Depois de todo esse périplo, do sobe-e-desce em ônibus e trens, eis que o dia já ia se acabando. Chovia cântaros e, antes de chegarmos ao nosso destino final-final, próximo do bairro Cidade Ocean, a noite impedia que se enxergasse dois palmos à frente do nariz.

E foi sob chuva e escuridão que a troupe desceu ali na areia mesmo, confiando na prática do motorista para saber se estávamos, de fato, em frente à rua do Cristo, onde se localizava

a casa da tia Maria, irmã da mãe. A casinha de madeira tinha sido trazida desmontada desde Rancharia, nos interior do Estado, mas essa já é outra história...

Bem, assim que a jardineira seguiu seu caminho, ali estávamos todos agrupados em torno das malas e sacolas na mais absoluta escuridão e sob chuva constante. Com frio e grudados como um bando de galinhas molhadas, ficávamos atentos aos relâmpagos, para, ao comando da mãe, correr em direção ao fim do areal, onde começava a rua. Cada relâmpago garantia uns 20 metros de caminhada com os pés afundando na areia fofa onde, nos próximos dias, eu iria construir meus intermináveis castelinhos de areia; isto é, se a chuva parasse...

No escuro, molhados até a alma, exaustos, mas felizes e realizados, finalmente lá estávamos nós na varandinha de tantas e tantas férias, entrando na casa dos janeiros e fevereiros da infância.

Missão cumprida, após conferir a prole e a bagagem, a mãe olha uma última vez para o céu.

E antes de entrar para preparar o jantar, comenta:

"Nossa, nem parece verão..."

luiz caversan

Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos 'Cotidiano', 'Ilustrada' e 'Dinheiro', entre outras funções. Escreve aos sábados.

 

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