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luiz caversan

 

29/10/2005 - 00h00

Dores da alma

Mal comecei o livro, depois de várias indicações qualificadas, e lá estavam, logo de cara, duas das mais importantes reflexões íntimas dos últimos tempos, certamente não só minhas, mas de muita gente que se tem dado ao trabalho de vasculhar a alma e seus meandros em buscas de porquês, aondes e comos.

"Algum dia, quando dispusermos de mais tempo, espero que me esclareça sobre o mecanismo preciso pelo qual tomar conhecimento da fonte elimina o sintoma", disse a bela e irreverente Lou Salomé ao vetusto doutor Josef Breuer.

Este se esquiva rapidamente de responder, claro, porque àquela altura, final dos 1800, estava apenas iniciando a formulação de sua grande conquista científica voltada para a mente humana, e Sigmund Freud era apenas um jovem médico, longe de se tornar o "pai" da psicanálise --o caminho mais curto entre a causa e o efeito das dores da alma.

Mas a moça não desiste em sua instigância, porque quer porque quer que o excepcional dr. Breuer, ajude seu amigo, ninguém menos que Friedrich Nietzche, o filósofo, enredado em desesperos existenciais vários, a ponto de pensar freqüentemente no suicídio.

Breuer vinha de uma experiência bem sucedida de tratar uma moça histérica por intermédio do que se denominou "terapia através da conversa", o que levou Salomé a buscá-lo como última esperança para salvar "o futuro da filosofia", ou seja, Nietzsche.

E ao tentar definir o amigo e sua resistência a qualquer tipo de ajuda, a linda jovem descreve o que classifica de desconfiança do filósofo em relação ao homem e seu ceticismo quanto à generosidade: "Ninguém deseja, acredita ele, ajudar os outros; pelo contrário, as pessoas desejam apenas dominar e aumentar seu poder".

Como dá para notar, e foi isso que me informaram, o enredo de "Quando Nietsche Chorou", romance histórico de Irvin D. Yalom, é um poço de imaginação, que envolve, além de Breuer, Nietzsche e Freud, Richard Wagner, paixões obsessivas, ciúmes, surgimento da psicanálise e, portanto, dores da alma.

Daí a impertinência deste colunista de, mesmo tendo apenas começado a se imiscuir neste universo litero-psicanalítico (100 de 400 páginas), ousar primeiro concordar com os que recomendaram o livro e depois capturá-lo para estabelecer uma ponte bifurcada com duas situações tão corriqueiras quanto contemporâneas.

1 - depressão: é legítimo intuir (incluindo aqui alguma experiência própria) que, por mais que avancem os tratamentos, mesmo que surjam mais e novos antidepressivos a cada dia, ainda que as combinações químicas prossigam como uma esperança aos deprimidos no sentido de resgatá-los ainda que parcialmente do seu mar de desespero, é na busca das causas e na identificações das origens (fonte) que se encontrará a dimensão real deste mal paralisante, oferecendo assim uma resposta concreta e minimamente inteligente a quem está prestes a desistir de tudo.

2 - amor e generosidade: cada vez mais a solidariedade e a generosidade têm se demonstrado paradoxalmente sentimentos extremamente egoístas. Fazer o bem tornou-se uma necessidade no processo de auto-aceitação e no exercício do poder. Da madame que divide seu "pão" para demonstrar que o tem sobrando para dividir ao voluntário que se entrega aos miseráveis para ser capaz de deitar a cabeça no travesseiro e dormir tranqüilo, eis que fazer o "bem" torna-se, assim, beneficiar a si próprio.

E o amor, a paixão? Será possível estabelecer a porcentagem dos casos em que o objeto da paixão nada mais é que território a ser conquistado, invadido? Serão nove em cada dez os amores em que o que vale de verdade, o que se deseja, o que se busca, ainda que carinhosamente, nada mais é que a dominação por um lado e a submissão por outro?

Nessa romântica luta pelo poder, trata-se de escolher o flanco, exercendo a que talvez seja uma das poucas coisas saudáveis que ainda trafegam na mente humana, que é a capacidade de optar.

luiz caversan

Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos 'Cotidiano', 'Ilustrada' e 'Dinheiro', entre outras funções. Escreve aos sábados.

 

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