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luiz caversan

 

01/04/2006 - 00h00

Depressão, sexo e sociedade

Dentre os diversos temas que pesquisei para um livro sobre depressão que nunca será publicado, e do qual este texto não vai fazer parte, um dos mais interessantes refere-se à sexualidade.

Talvez o aspecto que mais pressiona o deprimido em sua trajetória no universo das sensibilidades alteradas seja o sexual. Sobretudo, mas não apenas, para aquela pessoa que se encontra --ou, segundo as convenções da sociedade, deveria se encontrar-- no auge do seu vigor. Ou seja, homens e mulheres saudáveis, com mais de 16 e menos de 55 anos, e que clinicamente poderia ter a chamada vida sexual saudável.

Em praticamente todos os casos de depressão ocorre uma diminuição da libido do indivíduo. Assim como para uma infinidade de outros sintomas da depressão, não há uma explicação muito clara para isso.

Partindo da própria definição clássica de libido (instinto ou desejo sexual, energia motriz dos instintos de vida, isto é, de toda a conduta ativa e criadora do homem), basicamente o que se pode dizer é o seguinte: se uma pessoa acometida de depressão perde o interesse por quase tudo, todos os dias durante quase todo o dia, se ela deixa de gostar do que mais gosta, se seus afetos são comprometidos pelo embotamento causado pela doença, se perdeu a auto-estima a ponto de se julgar uma pessoa incapaz de fazer as coisas mais triviais do seu dia-a-dia, o que dirá de ter, primeiro capacidade física de se relacionar intimamente com alguém, segundo, força suficiente para romper as amarras do imobilismo e do medo, e, terceiro, satisfação em fazer isso?

O deprimido não quer fazer sexo como não quer sair da cama, não sente prazer no gozo como não sente prazer em comer, beber, rir. O sexo, ou a ausência dele, seria apenas mais um sintoma entre dezenas.

Seria, não houvesse na sociedade moderna uma espécie de ditadura do sexo, que determina padrões de comportamento, impõe regras, ritos e freqüências a serem obedecidos, e estigmatiza aqueles que não se enquadram nos seus parâmetros. Quem não faz sexo regular e satisfatoriamente é um "doente", diz uma dessas regras veladas e cujo cumprimento é perseguido até mesmo por casais absolutamente saudáveis.

Para o deprimido, a falta de tesão poderia ser mais um na sua grande lista de desprazeres. Mas acaba sendo mais que isso, até mesmo quando ele se dispõe a enfrentar quimicamente o problema.

É o que chamo de armadilha dos antidepressivos.

Mas, antes, é preciso perceber claramente a pressão que a sociedade moderna exerce nos indivíduos, muitas vezes forçando-os a uma sexualidade exacerbada, que ele nem sempre quer ou nem sempre está apto a exercer. E se sente "condenado" por isso, principalmente no caso daqueles que estão extremamente susceptíveis a sentimentos de culpa.

Em sua sensibilidade exposta, fragilizada, o deprimido se aproxima, na questão sexual, daqueles que buscam na realização às vezes exagerada do erotismo a satisfação dos seus sentimentos mais nobres, num confronto de expectativas em geral deletério.

É importante notar que essa pressão acaba, para o deprimido, sendo exercida pelo seu meio, sobretudo pelos parceiros que não admitem o fato de serem "rejeitados" ou de não serem contemplados fisicamente. E muito pior: a pressão também é exercida (num amplo espectro de culpa e punição) pelo próprio deprimido, que no mais das vezes passa a se sentir uma criaturas anormal, já que não corresponde às expectativas da sociedade, do parceiro e dele mesmo.

A sina do deprimido em relação à sexualidade não fica por aí, infelizmente.

Os tratamentos mais eficazes com que ele pode contar podem trazer embutidos, em si mesmos, uma armadilha sexual.

Essa expressão foi usada por um homem que eu entrevistei para uma reportagem publicada na Folha em 22 de abril de 2001. Ela quer dizer o seguinte: ao buscar o tratamento para a depressão, que traz relacionada entre seus sintomas a perda da libido, o usual é recorrer aos antidepressivos. Que por sua vez têm listada entre seus efeitos colaterais adivinha o quê? A perda da libido...

De fato, ao pesquisar para a reportagem, constatei o seguinte: a maioria dos antidepressivos pode ter reflexos na atividade sexual de até 95% dos pacientes. Trata-se, em grande parte dos casos, de efeito colateral previsto em bula.

Ou seja, em maior ou menor grau, nem sempre para todos os pacientes e nem sempre em todos os medicamentos, as substâncias utilizadas para combater a depressão têm o transtorno sexual como efeito colateral.
Mas a questão dos antidepressivos e da "armadilha sexual" não se restringe ao universo dos portadores de depressão. Segundo uma pesquisa realizada pelo psiquiatra Jair Mari, professor titular da Universidade Federal de São Paulo, e divulgada pela revista inglesa "Psychological Medicine", somente 11% dos medicamentos psicotrópicos usados no Brasil são receitados por psiquiatras. "Quem receita mais, em primeiro lugar, são os clínicos e, em segundo, os cardiologistas. Os especialistas no assunto, os psiquiatras, vêm em terceiro lugar", disse Mari à época.

A explicação para essa dicotomia é que os antidepressivos não são receitados só para depressão. Conforme estudo de Fábio Gomes de Matos Souza publicado na "Revista Brasileira de Psiquiatria", edição de maio de 1999, os antidepressivos também são utilizados para combater anorexia nervosa, ansiedade, pânico, bulimia, enxaqueca, úlcera, tabagismo e até urticária, entre outros males. Existem ainda casos de uso de antidepressivos para tentar controlar a tensão pré-menstrual.

Portanto, pelo menos em tese, o número de pacientes suscetíveis à "armadilha sexual" vai bem além dos portadores de depressão.
Embora a maioria dos pacientes deprimidos seja composta por mulheres, são os homens que têm maior dificuldade para aceitar a doença, de acordo com Jair Mari. "Porque ela está associada à idéia da fraqueza. Há uma crença enraizada na população de que os problemas causados pela depressão devem ser ultrapassados pela própria pessoa. O que é um erro.

A depressão, se não for tratada, pode até levar ao suicídio."
Quanto ao efeito colateral que afeta a sexualidade, quando esse se revela no homem, a tendência é o abandono do tratamento. O paciente masculino preferiria enfrentar os efeitos da doença a ter sua masculinidade questionada.

Esse dilema sexual foi vivido em toda a sua intensidade por um homem de 40 anos que eu entrevistei em 2001. Tanto na época quanto em maio de 2003, quando foi procurado novamente para participar da realização deste estudo, ele preferiu não se identificar.

Publicitário, bem informado, pessoa inteligente e sensível, L. descobrira um ano antes que tinha depressão. Segundo contou à época, a descoberta da doença significou um choque e um alívio. Um choque por saber que tinha um mal relacionado a pessoas "fracas" ou "problemáticas". E um alívio porque finalmente encontrou explicação para problemas que enfrentava havia anos e que o levaram à apavorante idéia de colocar fim à própria vida.

O diagnóstico de depressão foi dado por um psiquiatra, que partiu para o ataque direto: tratamento com fluoxetina, princípio ativo do medicamento Prozac. Cerca de um mês depois ele percebeu que tinha caído na tal "armadilha sexual": saiu de um quadro de depressão com transtorno sexual leve para um tratamento que, apesar de eficiente, causou perda total da libido como efeito colateral, o que o deixou deprimido novamente.

Tomar o antidepressivo a princípio também foi um problema, por causa das informações "controvertidas" sobre o medicamento --"remédio de tarja preta, para doentes mentais".

No entanto, L. aceitou o desafio --segundo disse, faria qualquer coisa para sair do "limbo" em que se encontrava.

Ainda segundo seu relato, o tratamento teve resultados excelentes. A não ser por um pouco de euforia e um tremor nas mãos em alguns momentos do dia, tudo parecia estar bem: a volta da auto-estima, o fim da melancolia e do pessimismo, a ausência das idéias fixas e dos maus pensamentos e da falta de perspectivas etc.

Tudo ia tão bem que ele demorou para se dar conta de que sua atividade sexual tinha diminuído para freqüências ainda menores do que quando estava deprimido.

Ele custou a relatar o problema para seu médico. Tinha o receio de que tivesse de abandonar o medicamento e a depressão voltasse. Chegou a avaliar se não era o caso de sacrificar a vida sexual em nome do bem-estar que estava vivenciando pela primeira vez após muito tempo.

Mas uma conversa com o especialista o fez mudar de idéia. Segundo o médico, a ausência de uma vida sexual normal impediria que o tratamento pudesse ser considerado bem-sucedido, porque ele não alcançaria a qualidade de vida desejável.

A solução foi tentar outro medicamento, cuja substância ativa é reconhecidamente menos prejudicial ao desempenho sexual.

Foi escolhida a bupropiona. A depressão permaneceu sob controle e sua atividade sexual voltou a níveis aceitáveis durante um tempo, mas, passados cerca de quatro meses, o problema retornou.

Depois disso, L. passou por uma série de experiências com antidepressivos (entre eles, as substâncias hipericum, nefazodona e venlafaxina), todos, no caso dele, com reflexos algum tipo de reflexo negativo na sexualidade, além de outros efeitos colaterais.

Em decisão conjunta com o médico, abandonou essa linha de tratamento e, quando falei com ele pela última vez, estava recorrendo havia três meses a um estabilizador de humor (divalproato de sódio).

Estava satisfeito tanto com a depressão "sob controle" quanto com a libido "em dia". Mas, confessou, nunca mais ira se livrar do temor de voltar a perder o tesão ou ficar deprimido, "quem sabe as duas coisas ao mesmo tempo".

Essa questão da sexualidade versus antidepressivos foi retratada de forma bastante irreverente, mas também realista, na cultuada série de televisão norte-americana "Sex and the City".

Em sua busca pelo relacionamento perfeito, a personagem Charlotte, a morena vivida pela atriz Kristin Davis, acaba encontrando um rapaz por quem fica verdadeiramente interessada. Mas ela estranha o fato de ele não chegar aos "finalmente", permanecendo "apenas" no carinho e na gentileza. Ela fica mais instigada ainda quando descobre que o homem tivera, anos atrás, um caso com a amiga Carrie, a personagem central da série, e dela ouve um diagnóstico: trata-se de um tarado.

A revelação aumenta a excitação de Charlotte, e ela parte para o ataque. Literalmente ela leva o cara para a cama, o que causa uma profunda decepção, porque simplesmente ele nega fogo. O que mais a deixa perplexa, porém, é o fato de o rapaz não demonstrar nenhum tipo de constrangimento ou culpa pela evidente impotência. Na verdade, parece estar feliz da vida.

Numa segunda ocasião, e diante de outro fracasso, ela põe o parceiro contra a parede e o questiona pelo fato de ele ter fama de garanhão e, com ela, ter aquele tipo de performance. A explicação dele é mais ou menos assim: "Eu era um tarado, sim, mas antes. Antes do Prozac. Eu era um homem completamente instável e infeliz e descarregava tudo isso no sexo. Depois do remédio, tudo mudou e eu estou muito bem assim." Disse isso na maior felicidade e com um sorriso límpido e tranqüilo nos lábios.

Mesmo com a insistência dela, a coisa não muda, ao contrário ("As vezes eu fico como uma maria mole", diz ele, para desespero da moça).

Ela sugere então que ele mude sua atitude. Diz ele: "Você quer que eu pare de tomar o remédio? Creio que não seria o caso. Afinal, você prefere um namorado calmo, gentil e carinhoso a um tarado instável e inconseqüente, não é?"

A resposta de Charlotte: "Não"

E cada um vai para o seu lado...

luiz caversan

Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos 'Cotidiano', 'Ilustrada' e 'Dinheiro', entre outras funções. Escreve aos sábados.

 

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