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luiz caversan

 

16/07/2011 - 07h00

O motoboy da cabeça amassada

Na primeira vez que ele se aproximou do meu carro no sinal fechado, achei que era mais um dos muitos mendigos e/ou fumadores de crack que infestam a região, favorecida, para eles, pela presença do Minhocão, viaduto-monstrengo que enfeia e deteriora este pedaço de São Paulo, mas que virou o maior abrigo para desvalidos que já vi na vida.

O rapaz (20 e poucos anos) veio titubeando apoiado num cabo de vassoura longo. Quando foi chegando mais perto, o olhar vazio e perdido no horizonte contrastava com as roupas dignas e asseadas e o jeito manso.

Com a voz empolada, chegando perto da janela, disse:

- Oi tio, pode me ajudar? Eu era motoboy, sofri um acidente e fiquei cego. Agora não posso trabalhar, o senhor não tem um trocado?

Foi quando eu percebi que aquele rapaz loirinho de cabelos encaracolados tinha um baita afundamento na testa. Praticamente não havia cicatriz, apenas aquela depressão côncava, como se uma bola de futebol tivesse atingido uma superfície macia. Não era macia:

- Foi um caminhão. Eu estava de capacete, sim, mas ele quebrou. Enfiei a cabeça na carroceria e agora fiquei assim. Mas tudo bem, né, a gente vai se virando. Deus ajuda e o pessoal aqui também. O senhor tem um trocado?

Eu tinha e dei, seguindo meu caminho quando o sinal abriu.

O tal cruzamento fica na rua de casa, portanto eis que estou passando por ali dias depois e lá estava ele de novo, se destacando entre os nóias (ou craqueiros) imundos e alucinados, com seu jeitinho tropicante entre os carros.

- Ei, Motoboy, vem aqui!

Chamei porque queria dar uma graninha para o cara e perguntar mais sobre sua tragédia pessoal, cuja sequela ele jamais conseguiria esconder, com aquele afundamento que vai do meio dos olhos até o couro cabeludo.

Mas ele demorou tanto para chegar, atrapalhado entre os veículos e a sarjeta, que mal consegui colocar a moeda na sua mão.

- Deus lhe pague, tio!

Na manhã seguinte, a cena se repete, mas desta vez parei bem ao lado dele.

- E aí, Motoboy, tudo em riba?

- Oi, tio, o senhor por aqui de novo...

- Ué, como você sabe que sou eu?

- Pela sua voz e pela cor do carro. Vermelho lindão né, tio?

- Mas você enxerga alguma coisa, então?

- Só o vulto, viu, tio. Depois do acidente fiquei sem enxergar nada, mas aos pouquinhos voltou alguma coisa. Agora dá para ver as cores e, bem de perto, se é homem ou se é mulher. Mas não chego muito perto, não, que a pessoa assusta, né tio? Com esse amassado na cara, já viu, né, assusta mesmo...

- Mas você vai voltar a enxerga bem de novo, Motoboy?

- Vou não... O médico disse que vai ficar assim, mesmo, só no vulto. Tudo bem, né tio, eu não reclamo, não, vou tocando a vida. Sempre aparece gente bacana pra dar uma força.

Quando ele ouve o barulho dos carros acelerando para seguir em frente, se afasta com cuidado, cutuca o chão com o cabo de vassoura e sobe ligeiro na calçada, com tempo de virar-se para o vulto vermelho que se afasta e gritar:

- Bom dia, tio, qualquer coisa 'tamos aí.

Ok, se eu precisar de alguma coisa que ele me possa dar, como aquele seu otimismo...

E está sempre por ali, mesmo, vejo-o com frequência, vira e mexe deixo na sua mão uma moeda de R$ 1 ou uma nota de R$ 2, o que o faz bem contentinho.

- Falou aí, tio do carro vermelho. Valeu!

Sigo sempre preocupado com aquela figurinha pequena, mirrada e frágil, praticamente meu vizinho Motoboy.

Preocupado?

O que mais de ruim pode acontecer com um rapaz que não vê, mal se locomove e exibe um rombo no meio da testa?

Ser atropelado por um motorista mais afoito?

Ser assaltado pelos fumadores de crack sem-noção?

Apanhar de um daqueles bebuns brigões que também circulam por ali?

E sua família, como será que trata o rapaz?

Ele tem família?

Hoje passei pelo cruzamento de novo com a ideia de dar-lhe mais um trocado e obter respostas a essas perguntas aflitivas. Mas ele não estava lá...

Para não ficar ainda mais preocupado, pensei:

- Tudo bem, amanhã ele está de volta.

Tomara, tomara...

luiz caversan

Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos 'Cotidiano', 'Ilustrada' e 'Dinheiro', entre outras funções. Escreve aos sábados.

 

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