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luli radfahrer

 

19/03/2012 - 07h01

Caos (des)controlado

A situação é familiar. Quando chega a sexta-feira, justo no momento de ir embora para aproveitar o fim de semana, a alegria é substituída por frustração e impotência. Pois este é justo o momento em que as coisas parecem estar minimamente sob controle, que os telefones pararam de tocar e que as mídias sociais finalmente sossegaram. Seria ideal usá-lo para dar fim a tudo que foi planejado desde o início da semana, se não fosse tarde demais.

Levar trabalho para casa não melhorará a situação, pois até conseguir o instante quase meditativo de silêncio interno, em que as tarefas parecem entrar em fila para serem executadas, o domingo já terá ido. E o fim de semana, como uma longa noite mal-dormida, terá sido desperdiçado, sem trabalho nem repouso.

Adiar tarefas para a semana seguinte é uma forma sutil de auto-engano, já que uma minoria talvez fique para o mês que vem enquanto o resto terá o mesmo destino de tantos planos de leitura, atividade física, cursos e dietas, largados no fundo de alguma gaveta mental até serem recuperados por algum imprevisto --ou esquecidos para sempre.

Estresse, depressão e impotência perante a situações complexas nunca foram novidade. Mas até há pouquíssimo tempo eles eram restritos a poucas pessoas, em raros momentos. Hoje a exceção virou regra. O que pensaria um indivíduo do século 19, mais ignorante, atrasado e insalubre do que o Homem do Futuro, a respeito de listas de pendências e afazeres com mais de vinte itens, boa parte deles em diversos níveis de urgência, cuja realização costuma ocupar o tempo de várias refeições e noites de sono?

É bem sabido que o organismo animal e pré-histórico do Homo sapiens ainda não conseguiu se adaptar satisfatoriamente às mudanças proporcionadas pela industrialização, urbanização e digitalização. Poucos levam em conta que o cérebro faz parte desse organismo, utilizado há duzentos mil anos, adaptado a hábitos com cinquenta milênios de idade. Não houve processo evolutivo capaz de prepará-lo para demandas contemporâneas extremamente complexas, como jogar Angry Birds no meio de um congestionamento.

Da mesma forma que guloseimas e quitutes apelam para o desejo inconsciente por sódio, glicose e gordura, o cérebro instintivo se impressiona com cada bip, cada clique, cada tuíte. Por mais que seja infrutífero (e impossível) assimilá-los todos, mesmo assim ainda há a tentação de consumi-los como se não houvesse amanhã, preparando-se para uma noite longa e um inverno de privação.

A fadiga resultante se manifesta em epidemias diversas de fadiga e neurose que, como a Diabetes e doenças cardíacas, poderiam ser minimizadas com pequenas mudanças em hábitos de consumo e estilo de vida. Mas da mesma forma que a indústria de fast-food apela para o impulso e a satisfação imediata para ignorar ou adiar o que seria saudável a longo prazo, marqueteiros usam pesquisas neurológicas de última geração para cutucar seus consumidores em todos os momentos possíveis.

A sobrecarga cognitiva é onipresente e histérica. Travestida de mídia, ela está em TVs e displays em ônibus, metrô, bares e outros espaços públicos que conseguiram escapar da Lei da Cidade Limpa. Além, é claro, dos computadores, smartphones, tablets e videogames. Sua potência é tamanha que, quando ausente, a sensação de vazio que deixa é enorme, a ponto de ser confundida com síndrome de abstinência.

É preciso desenvolver um comportamento crítico com relação aos estímulos. Quando a oferta é maior do que a procura, a seleção é fundamental. Como em uma lanchonete, shopping center ou festa, é preciso direcionar a atenção. Há muito tempo, Caetano Veloso dizia que o sol nas bancas de revista o enchia de alegria e preguiça, perguntando-se quem lia tanta notícia. Ninguém lia. Nunca se leu. Bibliotecas e obras de referência não são feitas para consumo integral.

A informação, como a comida, é incapaz de entrar involuntariamente no organismo. Não é porque algo está disponível que precisa ser assimilado. Ações instantâneas de computadores trabalhando em "tempo real" não demandam respostas imediatas. Como não há perspectiva de diminuição do volume de estímulos, o melhor regime é mais tradicional: a reeducação alimentar de informação, identificando o que é prioritário e descartando o supérfluo.

Religiões orientais pregam o desapego e renúncia na meditação da mesma forma que Sócrates, um dos pais do modo de pensar ocidental, defendia só saber que nada sabia. Há quase quinhentos anos um texto previra que o mundo e tudo a que ele pertence se dissolve e não deixa rastros, como um sonho. Nostradamus? Não, Shakespeare.

NOTA: esta coluna chegou atrasada à Folha, mas graças às benesses de sistemas eletrônicos, foi publicada a tempo. Minha desculpa é a mesma de todos.

luli radfahrer

Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro 'Enciclopédia da Nuvem', em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas.

 

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