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luli radfahrer

 

14/05/2012 - 07h00

A bolha voltou?

A pergunta, teimosa, não sai da cabeça. Poucos a formulam abertamente, mas a inquietação é clara. "O que foi a venda do Instagram?", resmungam alguns. "Os EUA não estão em crise? Daonde vem esse dinheiro?", cutucam outros. "Aonde vamos parar com salários assim?", lamentam os empreendedores. "Como uma indústria tão recente pode ter tantas especialidades?" reclamam os clientes. "Me lembro do tempo em que se fazia um website por menos de R$ 1000", lembram os nostálgicos. "Daqui a pouco essa onda do Ipad e outras bugigangas passa", afirmam os resistentes. "Não se pode falar em tecnologias com a infraestrutura que temos", acusam os opositores. "A realidade brasileira está aquém desta visão cibernética!" declamam os Macunaímas. "O frenesi de investimentos no Kickstarter é provocado pela política de juros baixos!" exclamam os leitores da 'Economist'.

Todos tem um pouco de razão, ao mesmo tempo que estão levemente equivocados. Por mais que o debate seja saudável, o acúmulo de questões leva a uma desconfiança generalizada, que ofusca o brilho das novas ações e obriga seus defensores a passarem boa parte do tempo se defendendo de cada ataque ao ambiente digital. Respondendo aos questionamentos acima, (1) o valor do Instagram deriva da qualidade de sua audiência e promessa de expansão com a plataforma Android; (2) há muito dinheiro nos EUA, mesmo com a crise, e a tecnologia é um ambiente próspero para investimentos; (3) salários altos indicam deficiências de formação, aplicação direta da lei de oferta e procura; (4) a indústria digital é a evolução da sociedade industrial e da economia de serviços, por isso demanda várias especialidades para reconstruir cadeias de valor; (5) websites baratos eram pouco mais do que folhetos eletrônicos, voltados para públicos restritos e com pouca interação além do e-mail; (6) smartphones e tablets indicam uma evolução e, como câmaras digitais, só darão lugar a algo ainda mais revolucionário; (7) ignorar a evolução sob argumentos de infraestrutura é virar as costas ao progresso e perder espaço para a concorrência; (8) a realidade brasileira é dinâmica, como provam o crescimento da venda de celulares e comércio eletrônico; e (9) a maioria dos projetos do Kickstarter e de outras ações de crowdfunding fracassa, só fazem sucesso os planos de negócio verdadeiramente revolucionários.

Faltou responder ao título. Como a questão é mais ampla, precisarei do restante desta coluna para respondê-la. Pelo que vejo nos movimento da indústria a resposta é clara: não. A bolha não está de volta.

Não é de hoje que áreas de inovação enfrentam sabatinas desnecessárias, obrigando-as a perder um tempo precioso na luta contra os reacionários estabelecidos (ironicamente, muitos deles inovadores no início de suas carreiras). O aquecimento global, a indústria de cigarros, a legalização do aborto, o casamento gay e tantos outros temas óbvios passaram anos em debates e discussões que retardaram avanços, em uma polêmica vazia que poderia ter sido evitada. Por mais que o mundo digital seja hoje bem diferente do que era há duas décadas, a luta para mostrar que ele é complexo, estrutural e modificador parece continuar a mesma. Muitos ainda chamam de "nova mídia" boa parte da comunicação via Internet, mesmo tendo YouTube e Facebook audiências superiores a qualquer canal de TV.

Olhando para trás chega a ser hilária a constatação que em 1994 a luta era para explicar que existia uma tal de Internet e que ela poderia ser um bom cartão de visitas para qualquer empresa. Naquela época não se imaginava que boa parte das transações comerciais e interações sociais migraria para a rede, da mesma forma que é impossível prever aonde estaremos em duas décadas. À medida que a rede foi mostrando seu valor, veio com ela a especulação, acompanhada por sua eterna parceira, a ignorância. Juntas, elas impulsionaram uma febre de investimentos aleatórios, uma verdadeira corrida do ouro, em que fortunas poderiam ser criadas da noite para o dia, baseadas em "talento", "potencial" e uma série de qualidades que nunca fizeram sentido no ambiente de negócios. Graças a elas, fenômenos inacreditáveis, como o "bug" do milênio, se propagavam inquestionáveis, com fervor digno de facção religiosa.

O resultado era previsível. Como qualquer dono de cassino bem o sabe, quem aposta às cegas acaba, sempre, perdendo. Mas ao contrário do que a turma do "eu te disse" defendeu na época, a crise não foi tão tsunâmica.
As ações de muitas empresas perderam um valor que nunca deveriam ter ganho, mas boa parte das que tinham negócios estáveis --como Microsoft e Cisco, entre outras-- continuou viva e ativa, mesmo que esfolada pela queda da bolsa. Uma pesquisa do SSRN mostra que, mesmo com toda crise, aproximadamente metade das empresas pontocom de 1999 ainda funcionava em 2004. É uma taxa de mortalidade alta, mas não alarmante. Um terço das Manufaturas, de acordo com a mesma pesquisa, morre no mesmo período.

Hoje o mundo digital é diferente, muito diferente do que era na virada do século. Nos Estados Unidos, o número de smartphones já superou o de celulares comuns. As operações digitais e suas derivadas, como logística e comércio eletrônico, são tão estratégicas que praticamente não se imagina indústria que não as utilize. Mesmo em países bastante pobres, como vários do Sudeste Asiático, o consumo de banda digital em plataformas móveis triplicou desde 2010, e a África segue o mesmo caminho. Nesses países, o digital preenche lacunas deixadas por serviços caros e irregulares de telefonia e pagamentos, crescendo em ritmo quase inversamente proporcional às economias de seus governos.

A bolha não voltou. A Internet, apesar de relativamente nova, é sólida e cresce vigorosamente. Mesmo sem o Facebook, o número de IPOs de 2012 já é impressionante, e o ano ainda não chegou na metade. Como atrai o interesse de muitos (não se discute a concorrência nas rotas navais ou o futuro da siderurgia nas mesas de boteco, por mais que sejam importantes), é natural que alguns de seus exageros chamem a atenção. Mas eles são raridades. Boa parte dos investimentos feitos na rede hoje é resultado de análise criteriosa e acompanhamento dedicado. As novas tecnologias permitem a construção de empresas a partir de investimentos pífios, desde que se tenha um plano de negócios bastante sólido, digno de respeito. Eles podem até nascer em uma garagem ou na cabeça de um adolescente, mas raramente sobreviverão se não se profissionalizarem.

Se nenhum desses argumentos é convincente, deve-se lembrar que na época da bolha, boa parte da Economia poderia apelar para um plano B se a Internet desaparecesse. Hoje é difícil prever o tamanho do colapso global se a rede deixasse de existir, mesmo que fosse por apenas uma hora.

luli radfahrer

Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro 'Enciclopédia da Nuvem', em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas.

 

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