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luli radfahrer

 

03/09/2012 - 07h00

A volta do cientista maluco

Todos conhecem o tipo, mesmo que nunca o tenham visto fora dos ambientes fantásticos de romances góticos, filmes de ficção científica ou desenhos animados. O Doutor (é sempre é um doutor) de avental branco e cabeleira grisalha é um gênio incompreendido, cuja octanagem e velocidade das ideias não encontra par ou compreensão entre os comuns. Seu estilo de vida misantropo, associado a uma desilusão com seus contemporâneos e a uma fortuna pessoal de origem desconhecida permitem a ele a construção de um laboratório secreto. Ali, cercado de tubulações hidráulicas e fiações elétricas, o visionário ignora o cotidiano enquanto projeta invenções megalomaníacas e perigosas. Sua fé nas ideias é tamanha que não hesitará em testá-las em si próprio se for preciso.

Esse personagem inventado no Século 19 faz todo sentido em um ambiente chacoalhado e perplexo com as transformações surgidas com a Revolução Industrial e a eletricidade, então recentemente domada pelo grupo de Benjamin Franklin. Na velocidade atordoante das carruagens, navios e trens, a inovação obrigava a sociedade a mudar, em poucas décadas, o estilo de vida que manteve por séculos. O ambiente mágico, em que choques elétricos moviam pernas de sapos, era perfeito para imaginar as experiências dos doutores Jekyll e Frankenstein.

Hoje não é preciso ter fortuna nem laboratório para inventar como se fazia no Século 19. Por trás de um monitor, todos estão reclusos em seus castelos, com acesso a tecnologias não imaginadas e a bases de conhecimentos maiores do que a soma de todas as Bibliotecas e Academias. Basta um pouco de paciência e as perguntas certas para os fóruns adequados que a busca por qualquer suplemento, droga ou implante seja conseguida rapidamente. As redes sociais permitem a criação de grupos tão específicos e isolados que discussões a respeito de qualquer tema são permitidas e encorajadas.

Se já causava algum desconforto a facilidade com que se encontram grupos de amadores e diletantes debatendo abertamente o uso de anabolizantes, medicamentos controlados, suplementos diversos, dietas e programas radicais de ginástica, a popularização da Eletrônica traz com ela voluntários dispostos a implantar chips debaixo da pele, conectar músculos a eletrodos e testar o efeito de cargas elétricas no próprio cérebro. Boa parte não tem paciência para o tempo que demanda a pesquisa médica. A maioria não é doutor em nada.

O potencial de tanta pesquisa é bom. Mas a cultura de autoajuda e de resultados instantâneos, que mói a auto-estima geral ao demandar músculos, discurso, conhecimento e autocontrole fora do comum, pode gerar efeitos colaterais perigosos. Sem perceber que o sistema está errado, muitos já voltam a mente contra o corpo, impedindo a ele o direito de descansar, errar ou filosofar. Com as novas tecnologias, as intervenções tendem a ser cada vez mais perigosas. E permanentes.

A atividade nessas comunidades tem a empolgação contagiante dos clubes de aficionados. Em alguns aspectos elas parecem as garagens de onde saíram as invenções de Jobs, Wozniak e Gates. Em outros, lembra grupos de fisiculturistas, tatuadores e artistas de piercing um pouco empolgados demais com sua atividade. Já há quem coloque a ideia de ciborgues, organismos parte máquina, em prática e dê uma de Edward Mãos de Tesoura ao implantar circuitos e magnetos em seus próprios corpos.

O uso de cobaias humanas, em tempos de guerra ou paz, nunca deu certo. O corpo humano é um sistema fechado e, como tal, tem um equilíbrio delicado, cheio de restrições a intervenções externas. Parte dele ainda é desconhecida e demanda uma pesquisa demorada. A impaciência de mexer nele indiscriminadamente e sem a orientação adequada pode comprometer a única máquina para a qual ainda não inventaram ctrl-Z.

luli radfahrer

Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro 'Enciclopédia da Nuvem', em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas.

 

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