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luli radfahrer

 

16/03/2011 - 07h30

Janelas indiscretas

Há pouco tempo ainda era possível traçar claramente as diferenças entre o mundo on-line e o off-line. A Internet ainda não era uma tecnologia de massa e mesmo entre os mais apaixonados por suas possibilidades havia um ceticismo com relação aos limites de sua penetração. A rede era um mundo à parte, estrangeiro ao ambiente material em que se vivia. Para se conectar a ela era preciso usar várias próteses: computador, modem, roteadores, provedores de acesso, linhas telefônicas. Transpostas as barreiras, percebia-se que as mudanças não eram tantas assim.

É até difícil lembrar como era artificial o sentimento de conexão. As interações eram lerdas, artificiais e, em sua maioria, baseadas em texto. Alguns chegavam a compará-las ao Correio, mesmo sabendo que até as velhas cartas, embora mais lentas, ainda eram mais confiáveis, estáveis e expressivas do que aquela massa de texto formal composta sobre um fundo branco.

Hoje o cenário é bem diferente. A quantidade de eletrônicos que se conectam instantaneamente às redes sociais e transmitem uma série de dados particulares em um clique ou menos já é expressiva e tende a aumentar. São celulares que registram a posição e o tempo de permanência de seus donos em cada lugar, câmaras de vídeo que têm seu tempo de gravação limitado às restrições do YouTube e que os editam e postam automaticamente, máquinas fotográficas que aplicam efeitos visuais e classificações no instante em que coletam suas imagens, tocadores de música que montam playlists de acordo com a atividade, a hora do dia e as preferências dos amigos, livros eletrônicos que indicam para o leitor distraído quais são as páginas mais marcadas e os trechos mais grifados por outros que tenham as mesmas preferências, sistemas de GPS que se conectam a redes sociais de trânsito e sugerem rotas alternativas, tablets que recebem e-mails, os leem alto e esboçam possíveis respostas, SMS automáticos para o caso do telefone estar ocupado e assim por diante.

Óculos conectados, geolocalizados, ligados ao Facebook e capazes de projetar sobre suas lentes informações sobre os lugares próximos e os contatos com quem se está a interagir ainda não existem, mas à medida que o tempo passa fica cada vez mais fácil compreendê-los. Talvez até já existam mas ainda não foram lançados, como sugere esse protótipo de aplicativo para smartphones.

Inovação gera inovação. Em parte por expandir aquilo que é possível imaginar. Hoje não é difícil conceber um carro cujo para-brisa troque de cor à medida que se atinge uma determinada velocidade e transmita esses dados a um sistema de radares policiais, mesmo que não se faça a menor ideia de como implementá-lo. Ou um GPS que projete o mapa sobre a vista que se tem da rua e trace o caminho mais curto para encontrar seus amigos. Ou um rádio "sintonizado" a leitores de mídias sociais, pronto para fofocar tudo o que passa pela cabeça de seus contatos. Ou em novas roupas e brinquedos que se modifiquem de acordo com as mudanças no ambiente. Fica difícil de imaginar com que sonharão as crianças nascidas no meio dessa nova interatividade.

A época das dúvidas e inibições se foi. As tecnologias de comunicação digital invadiram a cultura popular com a força de uma tsunami, alterando completamente o cenário e se misturando a ele de tal forma que fica difícil identificar que elementos pertencem a quais realidades. O número de objetos conectados é tão grande que logo perderá a importância e se tornará uma curiosidade, como o número de pessoas com mais de duas calças jeans no armário, fato tão comum e assimilado que torna inviável qualquer análise estatística.

Nesse cenário, a exposição só tende a aumentar. Nunca foi tão fácil fazer amigos, pertencer a grupos e se engajar em atividades coletivas. Sua localização, idade, língua,nível socioeconômico ou cultural vêm se tornando quase irrelevantes. Hoje todos querem ser microcelebridades e nunca as ferramentas para tal foram tão acessíveis.

Em um ambiente que é fácil construir uma reputação pessoal é natural que surja o desafio de multiplicá-la à medida que seus canais de distribuição aumentam. Em uma cidade pequena, a identidade pertence à comunidade. Em cidades grandes é possível representar um papel social na academia, outro no trabalho, outro em casa. As redes sociais podem tornar esse cenário mais difícil --já que se pode checar a validade de cada persona-- ou ainda mais fácil, ao permitir que as personalidades se multipliquem conforme o canal. Não adianta fechar as cortinas quando a cidade toda observa as janelas que ficam dentro de casa.

Hoje é cada vez mais difícil se desconectar. Não demorará o dia em que esse termo perderá boa parte do seu sentido. Daqui a pouco as próteses se vão. Ou serão definitivamente fundidas ao corpo, naturais como um olho cuja miopia foi corrigida ou um nariz endireitado ou um decote crescido. É bom se acostumar e aprender a se comportar nesse novo espaço público enquanto há tempo.

luli radfahrer

Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro 'Enciclopédia da Nuvem', em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas.

 

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