Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

marcelo leite

 

01/09/2010 - 00h02

IPCC: fora Pachauri

O relatório do Conselho Inter-Academias sobre os procedimentos do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima), divulgado anteontem (30/8), pode ser interpretado de mais de uma maneira. Nenhuma delas permite concluir que o trabalho do órgão seja um "caos", como alguns relatos buscaram caracterizá-lo. Eis o que o documento afirma na p. 51:

"O comitê conclui que o processo de avaliação [da ciência do clima] pelo IPCC tem sido em geral bem-sucedido e um bom serviço para a sociedade. (...) Por meio de sua parceria única entre cientistas e governos, o IPCC fez crescer a consciência pública sobre a mudança do clima, elevou o nível do debate científico e influenciou as agendas de ciência em muitos países. No entanto, apesar desses sucessos, são essenciais algumas mudanças fundamentais no processo e na estrutura gerencial."

O documento das academias parece brando com o IPCC, mas não é. No fundo --ou melhor, nas entrelinhas-- podem-se entrever alguns recados não verbalizados. O mais importante é que o indiano Rajendra Pachauri deveria deixar a presidência do painel.

O IPCC foi criado em 1988 pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial. É integrado por pesquisadores e representantes de governos. Sua missão é avaliar toda a literatura científica produzida num determinado período sobre a mudança do clima e seus efeitos sobre a população e a economia, assim como possíveis medidas para diminuir a emissão de gases do efeito estufa (mitigação) ou para minimizar os impactos (adaptação). Dessa avaliação nascem relatórios contendo o estado da arte da ciência do clima, dos quais já foram publicados quatro.

Em meio a uma guerra de comunicação sobre um erro crasso no Quarto Relatório de Avaliação (AR4, de 2007), Pachauri comportou-se com arrogância, pondo em risco a credibilidade amealhada pelo IPCC ao longo de duas décadas. Tratava-se da previsão do AR4 de que as geleiras do Himalaia poderiam desaparecer até 2035, uma bobagem isolada e irrelevante para abalar a conclusão de que o aquecimento global é inequívoco e parte dele é provocado pelo homem ("antropogênico", no jargão da mudança do clima).

O indiano demorou a responder e não reconheceu de imediato o erro, nem se desculpou logo por ele. Agora tem de aturar a dissecação do episódio pelo comitê. Dois de 12 revisores do trecho haviam apontado inconsistências e falhas de referência (a fonte era uma relatório da ONG ambiental WWF, e não um trabalho científico convencional), mas foram ignorados por autores e editores do relatório.

Em favor do IPCC, diga-se que a necropsia só se tornou possível porque tudo está documentado. Em seu desfavor, que tal negligência só se tornou possível porque os autores principais dos capítulos dos relatórios de avaliação têm a palavra final sobre o texto, uma largueza que precisa ser corrigida (a função crucial do revisor consciencioso é garantir que todas as observações críticas sejam resolvidas ou respondidas).

Diante dessas e de outras cincadas, conclui-se que a proposta do comitê auditor de criar um comitê executivo e o cargo de diretor executivo, abaixo do presidente do painel, todos com mandatos vinculados ao período de produção de um novo relatório (6 anos), constitui uma indireta para Pachauri pegar o boné. Ele comanda o IPCC desde 2002 e tem mandato até que saia o quinto relatório, em 2013 ou 2014. Nega que vá renunciar, mas isso pode ocorrer na próxima reunião dos representantes dos 194 países do painel, em outubro.

A auditoria das academias faz uma série de outras recomendações para aperfeiçoar o processo de avaliação bizantino, que implica examinar até 90 mil referências e comentários de colaboradores (também na casa dos milhares). Por exemplo, ter mais critério e transparência na escolha dos especialistas que contribuem na elaboração dos relatórios e da literatura que será considerada.

"Transparência" é uma palavra bonita, mas precisa ser traduzida em termos práticos. Não basta documentar os procedimentos internos do IPCC. Na era da internet e das páginas tipo "wiki", todos os documentos gerados nas várias fases do processo deveriam ser postos de imediato à disposição do público na rede mundial de computadores, para escrutínio amplo. O comitê das academias não foi tão longe.

Só especialistas credenciados, proponho, teriam meios de fazer contribuições diretas ao texto do relatório, ao longo das revisões sucessivas, mas precisariam pôr suas minutas e seus argumentos sob os olhos de todos, não só dos colegas de IPCC. O próprio credenciamento teria de ser feito assim, de forma aberta. Os "termocéticos" (negacionistas do aquecimento global antropogênico) e jornalistas investigativos encontrariam aí material farto para vigiar de perto os trabalhos e denunciar a tempo, na esfera pública, as falhas que encontrarem.

Sem uma alteração radical como essa nos procedimentos, com ou sem Pachauri, o painel permanecerá sob o risco de ser incluído no dito atribuído a Otto von Bismarck (1815-1898): leis e relatórios do IPCC são como salsichas --é melhor não saber como são feitos.

marcelo leite

Marcelo Leite é repórter especial da Folha, autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp). Escreve aos domingos.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página