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nina horta
Todos em volta do frango
DE SÃO PAULO
Fazia tempo que não tinha dia do leitor. Hoje tem. Quando você pensa que vai emocionar com teses sobre a civilização, a cultura, o consumo, o leitor se entusiasma mesmo é com a galinha. A leitora ficou pensativa a respeito da "partição da galinha" entre os membros de uma família.
"Imagino que oferecer a coxa ao pai tinha, inicialmente, o objetivo de fornecer mais calorias a quem despendia mais energia do ponto de vista físico, isto é, quando os pais eram trabalhadores braçais." E que agora a coxa é oferecida aos pais por causa do respeito burguês.
O que me leva a outro leitor, que não gosta de aparecer, ainda mais quando edito barbaramente seu texto para caber aqui. Ah, mas tem um blog bem público e bem bom. Bom demais: ebocalivre.blogspot.com.
"Ali, fumegando na mesa, as coxas apontando para o céu. Sem adjetivos, um frango é nada, insosso. Não dá para comer. Precisa ser caipira ou, no mínimo, carijó. Branco, nem pensar.
O tempero devia ser apenas sal, pimenta do reino e vinagre. Em algumas casas usavam também a cebola e o alho. Um desperdício. Na hora de assar, um alecrim enfiado entre a pele e a carne como dinheiro em bolso de malandro.
O cheiro do alecrim não podia sair e entrava na carne. Se não havia criação na casa, se comprava o frango de vara, na porta. Precisava um tempo no galinheiro para limpar por dentro. Comia só milho. E a pele ia ficando amarela, e o bicho engordava.
(...) Na mesa, todos em volta do frango. À mãe cabia dividi-lo porque mãe é quem sabe tudo sobre o gosto de cada um. O pai em primeiro. Se gostava de peito, os filhos comiam as coxas. Se gostava de coxas, os filhos comiam o peito de forma que as gerações iam se alternando no gosto de coxas e peitos, e se o avô vinha almoçar, matava-se dois frangos para que não houvesse disputa entre netos e avô, o que hoje chamam de conflito de gerações.
A mãe sempre comia a sobreasa, que não é coxa nem peito e nem asa e não entrava na disputa. Mãe é mãe, sempre pairando acima dos conflitos. A asa só se comia na gula. Ou sobrava para a empregada que, no geral, gostava mesmo é de sobrecu, chamado de curanchim ou uropígio para não introduzir o cu no festim. Nunca vi comer sobrecu à mesa. Sempre na cozinha.
A mãe sabia trinchar só com faca e garfo, desarticulando as partes do frango e provando, no gesto, que fora bem assado. Era o ponto. Acho que deve-se aos franceses a tesoura de trinchar frangos: a cabeça do fêmur grudada na carcaça, a sobreasa com pedaço de peito e de asa...
Um horror! Ao invés da comunhão, uma cena de mutilação presidida pela mãe. Como uma família assim poderia se amar e se respeitar? E vieram os supermercados, com as partes de frango em bandejas resfriadas. O frango decomposto, com cheiro que nem alecrim cura, sem gosto, molenga, gordura doente que não serve para canja.
Cada filho come na hora que bem entende. A empregada já não precisa saber nada. É por isso que eu digo: família é, por exemplo, comer harmoniosamente um frango."
Nina Horta é escritora, blogueira e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos. Escreve às quartas-feira.
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