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luiz rivoiro

 

03/10/2010 - 00h02

A última foto

Invariavelmente é assim que acontece: eu me programo para escrever sobre determinado assunto, mas aí algo surge do nada e acaba mudando tudo. Dessa vez não foi diferente. Tinha tudo pensado para falar sobre música, mas especificamente sobre o lançamento do excelente e bem-sacado DVD do grupo Pequeno Cidadão, de Arnaldo Antunes, Edgar Scandurra & Cia.. Longe do óbvio, eles montaram o DVD com clipes de animação para cada uma das canções do CD. Ficou muito bacana. Mas não vou mais falar sobre isso. Como disse logo ali no início, fui praticamente atropelado por outro assunto.

Não faz muito tempo, passei para o João uma das várias câmeras "analógicas" e quase pré-históricas que tenho em casa. E entreguei a ele justamente a mais simples, do tipo que a pilha só serve mesmo para o flash. Até a rebobinagem (alguém ainda sabe o que é isso?) do filme é manual. Mas antes que me considerem um sujeito atrasado e avesso aos avanços da tecnologia digital, informo que foi o próprio garoto quem pediu para usar a câmera com filme. Achava divertido a o misterioso momento do clic, o suspense da espera pela revelação e enfim a surpresa com o resultado das fotos impressas. E assim foi. Coloquei um filme colorido Fuji de 36 poses e lhe entreguei a máquina. Passou.

Vez por outra, eu via o menino com a câmera na mão arriscando um clic ali ou acolá. Do alto de minha "experiência", eu o alertava para as condições de luz e noções básicas de enquadramento. Animado, ele ouvia e seguia clicando. Mas vejam bem, 36 poses é pose pra caramba, e seus disparos pareciam não ter fim. Até que um dia a máquina travou. O filme havia acabado. Era chegado o momento da fase 2, tempo de rebobiná-lo e levá-lo para revelação. Recolhi a película e guardei o rolinho na minha bolsa. Prometi que o levaria para o laboratório, mas... esqueci!

E lá ficou por mais de um mês aquele pequeno casulo metálico com as imagens registradas pelo João. Até que semana passada me lembrei da promessa e corri a revelá-lo. Confesso que não esperava muito. Afinal, era o primeiro filme, com um câmera bem meia-boca. Quando peguei as fotos ampliadas, vi que das 36, haviam saído efetivamente 22. As demais tinham sido sub ou super expostas, impedindo a ampliação. Mas eis que dentre essas 22 fotografias me deparo com uma sequência de três imagens surpreendentes. No meio de muitas fotos do Pedro em todas as poses possíveis, uma da Mãe, outra minha, uma da tia Cacá com o tio Vivi, algumas da Rê, nossa fiel ajudante, e até uma dos dois irmãos jutinhos, surgem de forma inesperada as últimas fotos do Vovô Luizão.

No quintal da casa de Ribeirão Preto, na imagem granulada pela insuficiência de luz natural, lá estão devidamente enquadrados o Vovô e a Vovó Lurdinha sentados nas cadeiras de jardim. O calor que fazia fica evidente, visto que o Vovô, como de costume, veste apenas uma bermuda surrada, beeeem surrada. Talvez estivesse beirando os 40oC, normal para a cidade. Mas o que o que chama atenção não é a informalidade dos trajes ou do ambiente. Muito longe disso. São os sorrisos que preenchem a cena. Eles preenchem todo o quadro.

Na primeira foto, Vovô e Vovó têm o Pedro entre eles. O menininho exibe aquele seu ar travesso, desencanado, enquanto o casal posa com determinação, os dois orgulhosos de estarem ali, exatamente naquele instante. As duas outras imagens mostram o Vovó e Vovô sozinhos, ainda nas mesmas cadeiras. O olhar se sustenta, mirando diretamente a lente embaçada da máquina do João. O orgulho, assim como uma onda de felicidade sincera, penetram a câmara escura e impregnam para sempre a película de ASA 400. Vejo agora pelos olhos do João, os olhos deles. Não apenas os olhos, mas as rugas, os cabelos brancos (rareando no caso do Vovô), as mãos, os pés. De novo, os sorrisos. Sim, o João captou ali, naqueles seus clics no quintal, as últimas imagens do Vovô Luizão. E que bom que tenha sido ele. E que bom que tenha sido um momento tão feliz.

Luiz Rivoiro

Luiz Rivoiro, 42 anos, é pai de João, 8, e de Pedro, 4. Jornalista, trabalhou na "Folha de S.Paulo" por 14 anos. É editor da revista "Playboy" e autor do livro "Pai É Pai - Diário de um Aprendiz". Escreve quinzenalmente para a Folha.com.

 

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