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pasquale cipro neto

 

05/07/2012 - 03h00

Cultura brasileira deve muito a Gilberto Gil

DE SÃO PAULO

Gilberto Passos Gil Moreira acaba de completar 70 anos. Filho de médico e de professora, formou-se em administração de empresas na Universidade Federal da Bahia. Trabalhou na alfândega, na Bahia, e na Gessy Lever, em São Paulo. Um belo dia, graças ao bom Deus, largou a gravata, o paletó, a pastinha etc. e pôs os pés, as mãos, a mente, a alma e o coração na música, na poesia, na arte.

A cultura brasileira moderna deve muito a Gilberto Gil. A língua portuguesa deve muito a Gilberto Gil. Eu poderia escrever textos e textos sobre verdadeiros achados poéticos de Gil, em muitas das suas belíssimas canções, mas, como o espaço é limitado, concentro este texto em alguns de seus versos.

Começo com "Metáfora", verdadeira aula magna, que parte da prática da metalinguagem: "Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: 'Lata' / Pode estar querendo dizer o incontível". Sobre a elaboração dessa canção, Gil diz que "queria falar do significado da poesia, poetar o poetar".

E como falou o Mestre baiano! Depois de "explicar" o sentido literal de "lata" ("existe para conter algo"), a letra de Gil diz que, na linguagem poética, a lata (recipiente) pode deixar de ser o recipiente para passar a ser o conteúdo que recipiente algum pode conter ("o incontível").

E a letra continua, cortante: "Por isso, não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata / Na lata do poeta tudonada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível". Para muita gente, é difícil entender o que dizem esses versos da letra de Gil justamente porque para essas pessoas é difícil entender algo que não seja pau, pau, pedra, pedra. Para muitos, o auge desse limite está em "tudonada cabe" ("Como assim? Existe a palavra 'tudonada'?" -pobre poeta, pobre poesia!).

Cabeças engessadas, formadas pela ditadura estreita do literal estrito, sofrem para perceber a beleza de uma imagem poética, tão necessárias (a beleza e a imagem) para que a vida flua, para que a percepção se faça, para que o entendimento e a compreensão se concretizem. Pois a essência do que diz Gil nesses versos está justamente na ideia de que cabe ao poeta (ao artista) fazer o anormal, o estranho, o incomum, ou seja, cabe-lhe fazer o que não foi feito, dizer o que não foi dito ou talvez já tenha sido dito, mas de um jeito inaudito.

Uma das canções de Gil que mais me comovem é "Drão" (apelido de Sandra, com quem Gil foi casado). Com imagens de rara beleza ("Drão / O amor da gente é como um grão / Uma semente de ilusão / Tem que morrer pra germinar"), a letra é uma verdadeira pletora de talento e de competência linguístico-literária, cujo auge, para mim, ocorre nestes versos: "Drão / Os meninos são todos sãos / Os pecados são todos meus".

Como se já não bastasse a bela sequência "são todos sãos", Gil se vale do difícil e expressivo recurso da ruptura do paralelismo ao empregar como sujeito de "são" primeiro um substantivo concreto ("meninos") e depois um abstrato ("pecados") e ao terminar um verso com um adjetivo ("sãos") e outro com um pronome ("meus"). Maravilha pura!

E viva Gilberto Gil! É isso.

pasquale cipro neto

Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".

 

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