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paul krugman

 

01/04/2011 - 18h28

A doutrina Mellon

"Liquide os trabalhadores, liquide as ações, liquide os agricultores, liquide os imóveis". Foi esse, de acordo com o presidente Herbert Hoover, o conselho que ele ouviu de seu secretário do Tesouro, quando os Estados Unidos mergulharam na Grande Depressão. Vale ressaltar que restam dúvidas quanto a Mellon ter de fato feito essa recomendação; a única referência a respeito é a versão de Hoover, escrita muitos anos mais tarde.

Mas uma coisa está clara: liquidar tudo, ao modo de Mellon, se tornou a doutrina oficial do Partido Republicano.

Duas semanas atrás, os assessores da bancada republicana do Comitê Econômico Conjunto do Congresso divulgaram um relatório intitulado "gastar menos, dever menos e promover o crescimento da economia"; o estudo argumentava que reduzir os gastos e o número de funcionários do governo diante de uma economia em profunda depressão na verdade resultaria em criação de empregos. O texto invocava em parte a ação misteriosa da fada da confiança. Mas o argumento dominante parecia vir diretamente de Mellon.

Eis a explicação do estudo sobre como as demissões de funcionários públicos resultariam em criação de empregos: "Uma força de trabalho governamental menor aumenta a oferta de trabalhadores com bom nível educacional e alta capacitação disponíveis para as empresas privadas, e com isso reduz os custos trabalhistas". Se deixarmos de lado os eufemismos, o que o estudo afirma é que, ao elevarmos o desemprego, especialmente entre os trabalhadores de "bom nível educacional e alta capacitação" --se você estiver tentando imaginar de quem eles estão falando, a referência é em geral aos professores--, será possível reduzir o valor médio dos salários, e com isso encorajar contratações.

Se pensarmos a respeito, existe um problema lógico imediato quanto à ideia: os republicanos estão afirmando que destruir empregos resulta em salários mais baixos, o que resulta na criação de empregos. Mas essa criação de empregos não resultaria em salários mais altos, o que conduziria à destruição de empregos, o que...? Preciso de uma aspirina.

Além disso, por que reduzir salários serviria para promover nível de emprego mais elevado?

Existe uma falácia de composição, quanto a isso: já que os trabalhadores de qualquer empresa individual poderiam salvar seus empregos caso aceitassem um corte de salários, decorre que uma elevação geral no nível de emprego seria possível por meio de um corte generalizado nos salários. Mas cortes de salários na General Motors, digamos, ajudaram a salvar alguns empregos que teriam sido cortados porque tornaram a GM mais competitiva diante de outras companhias que não haviam promovido reduções de custos. Não existe benefício comparável caso todos os salários venham a ser cortados ao mesmo tempo.

Na realidade, um corte generalizado de salários resultaria quase certamente em queda, e não elevação, no número de empregos. Por quê? Porque a renda viria a cair mas as dívidas não, e por isso um corte geral de salários agravaria o problema de endividamento, que no momento é o principal obstáculo à recuperação.

Para resumir, a teoria de Mellon está tão errada agora quanto estava há 80 anos.

Essa ideia de liquidação geral não é, no entanto, o único argumento que o relatório republicano oferece para sustentar a alegação de que reduzir o número de trabalhadores empregados na verdade cria empregos. O estudo também recorre à fada da confiança, ou seja, sugere que os cortes nos gastos públicos estimularão o consumo privado ao estimular a confiança dos consumidores e das empresas, o que conduziria a uma expansão econômica.

Ou talvez "sugere" não seja a palavra correta; "insinua" seria uma descrição mais precisa. Pois algo de estranho aconteceu recentemente com relação à teoria da "austeridade expansiva", a ideia de que cortar os gastos do governo, mesmo em meio a uma crise econômica, conduz a crescimento mais rápido para a economia.

Um ano atrás, os conservadores alardeavam alegremente estudos estatísticos que supostamente demonstravam muitos exemplos bem sucedidos de uso da austeridade expansiva. Mas de lá para a cá, a maioria desses estudos terminou completamente demolida por pesquisadores cuidadosos, especialmente no FMI (Fundo Monetário Internacional).

Para seu crédito, os assessores que redigiram o relatório republicano estão claramente cientes de que as provas já não sustentam sua posição. Para seu descrédito, a resposta deles a isso foi repetir os mesmos velhos argumentos, mas usando termos dúbios que lhes ofereçam cobertura: o estudo afirma que os efeitos da austeridade sobre a confiança "podem elevar o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto)". Podem sob que circunstâncias? Estimular com relação a quê? O texto não diz.

Eu já mencionei que, no Reino Unido, o governo que assumiu em maio passado acatou completamente a doutrina da austeridade expansiva, mas a economia se paralisou e a confiança caiu ao seu ponto mais baixo em dois anos. E até mesmo as projeções mais recentes e pessimistas do governo de baseiam na suposição de que os domicílios britânicos, já pesadamente endividados, assumirão novas dívidas nos próximos anos.

Mas pouco importam as lições da História, ou os acontecimento do lado de lá do Atlântico: os republicanos agora adotaram irrevogavelmente a doutrina de que é preciso destruir empregos para criá-los.

E os democratas não estão rebatendo esses argumentos como deveriam. A Casa Branca, especialmente, ofereceu rendição ao inimigo, na guerra de ideias; nem mesmo tenta apresentar argumentos contrários aos fortes cortes de gastos que resultarão em desemprego ainda maior.

Portanto, é esse o estado do debate de política econômica no maior país do mundo: um dos grandes partidos adotou falácias econômicas que fracassaram 80 anos atrás, e o outro perdeu seu espírito de combate. E as famílias dos Estados Unidos pagarão o preço.

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI

paul krugman

Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.

 

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