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paul krugman

 

22/04/2011 - 14h47

Pacientes não são consumidores

No começo desta semana, o "New York Times" reportou sobre os esforços do Congresso norte-americano para impedir o estabelecimento do Conselho Independente de Consultoria sobre Pagamentos, uma das peças essenciais no esforço do governo para conter a alta nos custos da saúde. A reação era previsível; e é também profundamente irresponsável, como argumentarei logo adiante.

Mas um outro fator chamou minha atenção quando comecei a estudar os argumentos do Partido Republicano contra o estabelecimento do conselho, os quais giram em torno da ideia de que o verdadeiramente necessário, nos termos da proposta orçamentária dos republicanos da Câmara dos Deputados, é "fazer com que os programas de saúde do governo se enquadrem melhor às escolhas dos consumidores".

E eis minha questão: quando é que se tornou normal, ou, aliás, quando é que se tornou aceitável, se referir a pacientes de serviços médicos como "consumidores"? A relação entre costumava ser considerada como algo de especial, quase sagrado. Agora, políticos e supostos reformistas falam sobre o ato de receber cuidados de saúde como se não diferisse de uma transação comercial, como se fosse o equivalente a comprar um carro -e a única queixa que parecem ter é a de que a transação não é comercial o bastante.

O que aconteceu de errado com o país?

Quanto ao conselho consultor: temos de fazer alguma coisa com relação aos custos da saúde, o que significa que precisamos encontrar uma maneira de dizer não. Dadas as constantes inovações na medicina, aliás, não é possível manter um sistema sob o qual, na prática, o Medicare paga por qualquer forma de tratamento que um médico recomende. E isso é especialmente verdadeiro quando essa abordagem ao modo cheque em branco se combina a um sistema que dá aos médicos e hospitais -que não são santos- forte incentivo financeiro para que conduzam tratamentos dispendiosos demais ou prolongados demais.

Para isso foi o criado o conselho consultor, por determinação do pacote de reforma da saúde aprovado no ano passado. O conselho, formado por especialistas em saúde, teria de seguir uma meta de limitação do crescimento nos custos do Medicare. Para manter os gastos no limite ou abaixo dele, o conselho promulgaria sugestões "expressas" de controle de custos que seriam adotadas automaticamente a menos que o Congresso decidisse revertê-las.

Antes que você comece a gritar sobre "racionamento" e "conselhos da morte", tenha em mente que o que está em debate aqui não é um limite aos serviços de saúde que uma pessoa possa adquirir com seu dinheiro (ou com o dinheiro de seu plano de saúde). As limitações se aplicariam apenas àquilo que seria pago com o dinheiro dos contribuintes. E, pelo que bem me lembro, a Declaração da Independência dos Estados Unidos não afirma que temos o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade com todas as despesas pagas.

O ponto é que escolhas terão de ser feitas; de uma maneira ou de outra, os gastos do governo com a saúde terão de ser limitados.

Agora, o que os republicanos da Câmara dos Deputados propõem é que o governo simplesmente transfira aos idosos o problema da alta nos custos da saúde; ou seja, que substituamos o Medicare por vales que poderão ser usados na aquisição de planos de saúde privados, e que contemos que os idosos e as operadoras de planos de saúde de alguma maneira resolvam o problema entre eles. A proposta republicana afirma que isso seria superior ao procedimento de revisão por especialistas porque abriria o sistema de saúde às maravilhas da "escolha pelo consumidor".

O que existe de errado com essa ideia (além do valor absurdamente inadequado dos vales propostos)? Uma resposta é que ela não funcionaria. A medicina com "escolha do consumidor" fracassou onde quer que tenha sido tentada. Para mencionar apenas o mais relevante exemplo, o programa Medicare Advantage -originalmente conhecido como Medicare + Choice [Medicare + Escolha]- deveria supostamente gerar economia de custos. Mas terminou custando substancialmente mais que o Medicare em seu formato tradicional. Os Estados Unidos têm o sistema de saúde com mais "influência do consumidor", entre os países avançados, e também apresentam os custos de saúde mais altos, por larga margem, sem que isso resulte em serviços de saúde de qualidade superior à encontrada em outros países nos quais o sistema tem custo mais baixo.

Mas o fato de que os republicanos estejam exigindo que literalmente apostemos nossa saúde, e quem sabe nossas vidas, em uma abordagem já fracassada é apenas parte do que a ideia toda tem de errado. Como afirmei acima, existe algo de fundamentalmente errado no conceito de pacientes como "consumidores" e serviços de saúde como simples transações financeiras.

Os cuidados médicos, afinal, são uma área em que decisões cruciais -decisões de vida e morte- precisam ser tomadas. Mas tomá-las de maneira inteligente requer vasto volume de conhecimento especializado. Além disso, essas decisões muitas vezes precisam ser tomadas sob condições nas quais o paciente está incapacitado, sob severa pressão ou precisa de ação imediata, sem tempo para discussão de escolhas, quanto menos para procurar os melhores preços.

É para isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos sempre foram vistos como algo de especial, e que esperamos deles um comportamento de padrão superior ao de outros profissionais liberais. Existe um motivo para que assistamos a séries de TV sobre médicos heroicos quando não existem séries de TV sobre heroicos executivos de escalão intermediário.

A ideia de que tudo isso possa ser reduzido a dinheiro -de que os médicos são apenas "fornecedores" vendendo serviços aos "consumidores" de serviços de saúde... Bem, ela me deixa doente. E o fato de que esse tipo de linguagem se tenha tornado dominante é um sinal de que existe algo de muito errado não apenas nessa discussão mas sim nos valores de nossa sociedade.

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI

paul krugman

Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.

 

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