Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

20/03/2012 - 07h00

Tempo nublado

Foi um mês de más notícias para a presidente Cristina Kirchner. Apesar de ainda contar com uma aprovação e uma popularidade capazes de a reeleger novamente, sua imagem começa a sofrer um desgaste que já é possível traduzir em números.

Segundo a consultora Management & Fit, em pesquisa realizada para o jornal "Perfil", Cristina já perdeu 17 pontos desde que iniciou seu segundo mandato, no último dia 10 de dezembro.

A mandatária argentina tem sofrido várias pequenas derrotas. O fantasma da crise mundial e a desaceleração do crescimento de importantes parceiros comerciais, como Brasil e China, já é um fato.

A isso, acrescenta-se o escândalo de corrupção envolvendo seu vice-presidente, Amado Boudou, a tragédia de trem da Estação Once, em Buenos Aires, e as impopulares travas à importação, que estão fazendo faltar até remédios contra câncer e AIDS no país.

Boudou é acusado de favorecer um amigo de juventude, Alejandro Vanderbroele, que adquiriu uma gráfica já quebrada e que de repente começou a fazer muito dinheiro. Além de panfletos para a campanha presidencial de Cristina, a Ciccone imprimia nada menos que dinheiro argentino, em notas de 100 pesos.

O vice ainda é acusado de fazer parte de uma intrincada rede de favorecimentos de empresas privadas com ligações estreitas com gente do poder.

As acusações, a maior parte delas veiculadas por jornais opositores, não tiveram resposta por parte do governo. Cristina não saiu para defendê-lo, nem ele deu declarações sobre as denúncias. A exceção foi uma participação no circense "6,7,8", programa da TV estatal dedicado a fazer propaganda do governo e a detonar a mídia opositora. Isso sem contar, claro, as aparições do vice em shows de rock usando camiseta com os dizeres: "Clarín mente."

Já a tragédia de trem da Estação Once, que deixou um saldo de 51 mortos e mais de 700 feridos, atingiu a imagem de Cristina junto à população de renda mais baixa. A TV mostrou a presidente indo passar o fim de semana em Río Gallegos, enquanto feridos ainda se recuperavam nos hospitais e um morto ficou abandonado num dos vagões, sendo descoberto apenas 48 horas depois da tragédia.

A ausência da presidente foi ainda agravada pelo papelão que funcionários de alto escalão protagonizaram tentando minimizar a tragédia. O protagonista, no caso, foi o então secretário de Transportes, Juan Pablo Schiavi, que soltou um par de frases infelizes. Primeiro, disse que o acidente tinha sido grave só porque tinha ocorrido num dia normal de trabalho, como se fosse aceitável num feriado, que teria menos movimento e, portanto, menos mortos.

Depois, praticamente jogando a culpa nas vítimas, declarou que os que morreram estavam principalmente no primeiro vagão, comprovando um aspecto muito tradicional da cultura argentina de querer estar sempre à frente de todos. Schiavi não durou muito, semanas depois entregou o cargo alegando questões de saúde.

Quando falou sobre o tema, Cristina acrescentou outra gafe às já divulgadas, dizendo que a desgraça era consequência de algo positivo: o fato de que, hoje, as pessoas têm trabalho e por isso se deslocam de trem, diferentemente da situação de 2001, quando o desemprego era tão alto que o transporte público não era requisitado.

Já as travas à importação têm descabelado compradores, provocando a diminuição, quando não a suspensão, da produção de várias indústrias, além de deixar a população na mão com relação a alimentos, roupas e remédios importados. O comércio bilateral com o Brasil tem sido uma vítima recorrente, levando até a pedidos de retaliação do lado brasileiro.

A sensação é que Cristina começou o ano com o pé esquerdo, e suas reações não são as mais animadoras. Enquanto se agarra em seu discurso de reivindicação das ilhas Malvinas, numa tentativa clara de desviar a atenção pública dos problemas mais concretos do dia a dia, demonstra através de declarações de péssimo gosto que está sentindo o baque dos recentes percalços.

Um dos exemplos foi a reação desastrada a uma manifestação de professores, que entraram em greve por melhores salários. Cristina disse que eles não tinham direito de reclamar porque trabalhavam "apenas quatro horas por dia e tinham três meses de férias". A reação negativa foi imediata e a greve alcançou mais de 95% de participação.

Mas foi contra seu tradicional adversário, a imprensa opositora, que Cristina investiu com mais agressividade. Na semana passada, referiu-se a dois jornalistas, um do "Clarín" e outro do "La Nación", como "anti-semita" e "nazista", por conta das críticas que formularam contra o vice-ministro de economia, Axel Kiciloff, que é judeu.

Ainda, o governo é acusado de ter mandado tirar do ar uma entrevista do canal C5N com o ex-chefe de gabinete Aníbal Fernández, na qual ele fazia críticas à mandatária.

Segundo o jornalista mexicano Alberto Padilla, da CNN, que estava no estúdio e seria entrevistado na sequência, o próprio ministro do Desenvolvimento, Julio De Vido, teria telefonado para o canal, que é alinhado ao governo e recebe altas quantias de publicidade oficial, pedindo sua retirada do ar. De Vido nega a interferência.

A crise com o vice-presidente é a mais séria desse início de mandato. Mesmo os analistas mais pessimistas não imaginavam que o vice se queimaria tão rápido. Escolhido por Cristina por sua suposta lealdade, Boudou não conta com o voto de confiança de outros altos funcionários, e nem de Máximo, o filho da presidente, cada vez mais influente no governo.

O resultado é uma crise de confiança que gera uma maior concentração de poder. Cristina cada vez mais se apoia em seus colaboradores mais fieis. Além do filho, o secretário legal e técnico, Carlos Zannini, e Héctor Icazurriaga, diretor da secretaria de inteligência.

Num segundo escalão, mas distante desse trio, estariam os ministros de Estado e a cada vez mais influente agrupação La Cámpora, com mais de dez deputados eleitos e representantes em cargos estratégicos de empresas estatais.

Em um possível cenário em que Boudou saia de cena e um espaço de poder se abra junto à presidência, sãos esses os personagens que vão se mover para tentar ocupa-lo.

A população, preocupada com a educação dos filhos, o transporte seguro e o emprego, parece não se contentar apenas com discursos vazios sobre um arquipélago inócuo onde praticamente não vivem argentinos. Os números começam a mostrar isso.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página