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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

24/07/2012 - 03h00

Buenos Aires e o resto

Nas últimas semanas, tem crescido a tensão entre o poder central argentino e o resto do país. Endividadas, as províncias pressionam Cristina Kirchner pelas vias políticas e até com atos de violência. O governo nacional, com escassez de divisas, deixou de enviar dinheiro para o interior.

Na província de Buenos Aires houve fortes protestos porque o governador declarou não ter dinheiro para pagar a aposentadoria dos trabalhadores. Enquanto isso, em Santa Cruz e em Chubut, na Patagônia, a insatisfação levou a greves e cortes de estradas e as pessoas saíram às ruas. Cristina teve até de enviar a gendarmeria (Polícia Militar) à sua própria província, admitindo que tem problemas em seu próprio quintal.

Os conflitos de hoje, porém, não começaram agora. A história argentina é marcada por essa dicotomia entre o porto de Buenos Aires e o interior do país. Diferentemente do Brasil, que sempre teve o poder político diluído em algumas grandes cidades, São Paulo, Rio, Brasília, Salvador, em diferentes épocas, na Argentina o poder da capital sempre foi muito forte e é possível dizer que o país se constituiu a partir desse embate.

Suas duas fundações, no século 16, a colocaram como o primeiro povoamento dessa zona do Rio da Prata. Com grandes problemas de acesso, os espanhóis tardavam meses para fazer com que os alimentos e outros produtos abastecessem a cidade. Não era possível transitar pela costa brasileira, vigiada pelos portugueses. A opção, então, era trazer tudo por meio do Peru, atravessando a Cordilheira dos Andes.

A fome e a falta de recursos marcaram os primeiros tempos da cidade, mas também fizeram surgir o contrabando e o comércio ilegal de mercadorias. As províncias, que iam se povoando aos poucos, dependiam completamente da cidade-porto, para comprar víveres e para vender seus produtos, ainda que com altas taxas.

Ao longo do século 19, após a independência (proclamada em Buenos Aires), quando o Estado Nacional argentino estava em formação, os desencontros entre as províncias e Buenos Aires foram constantes. O acesso ao porto, a livre navegação dos rios, a cobrança de impostos para a passagem dos produtos por meio de Buenos Aires eram motivo de ardentes discussões e guerras.

Os caudilhos do interior, chamados de federalistas, opunham-se aos conhecidos como unitários, que queriam que a Argentina fosse organizada a partir e segundo a lógica de Buenos Aires.

Tamanha foi a discrepância que os grupos do interior lutaram por anos para se livrar do autoritário Juan Manuel de Rosas (1793-1877), líder militar portenho que controlou o país com mão de ferro a partir de Buenos Aires entre 1829 e 1832, e depois entre 1835 a 1852.

Derrubado por uma aliança de forças das províncias e com auxílio dos Exércitos do Brasil e do Uruguai, Rosas partiu para o exílio e a força do interior passou a comandar o país. Buenos Aires revoltou-se, tentou retomar a cidade sem sucesso, e permaneceu fora da Confederação de 1852 até 1861, até a Batalha de Pavón, após a qual Bartolomé Mitre (1821-1906) unificou o país. Ainda assim, só em 1880 a cidade seria federalizada a as diferenças, de certa forma, aparadas.

Ler os jornais argentinos nos dias de hoje é como chamar esses conflitos de volta. Do campo vem a ideia de que o porto exerce um poder arbitrário e onde desembarcam as ideias e as empresas estrangeiras, dispostas a usurpar as riquezas nacionais. Do porto, a imagem do campo como um lugar de atraso e conservadorismo moral.

Por mais que os interesses políticos se refiram a questões contemporâneas, o fundo da discussão é esse. Ao colocar fogo na discórdia, como vêm fazendo Cristina Kirchner e governadores como Daniel Scioli (Buenos Aires) ou Daniel Peralta (Santa Cruz), a única coisa que estão conseguindo é potencializar essa divisão e reforçar antigos preconceitos históricos.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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