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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

09/11/2010 - 07h02

Ingrid e Mario

Nas últimas semanas recebi pela Folha e entrevistei duas personalidades latino-americanas. O escritor peruano Mario Vargas Llosa e a ex-senadora colombiana Ingrid Betancourt. Seus propósitos e momentos de vida são bastante diferentes, mas não deixei de notar que as duas visitas tinham coisas em comum, enquanto também permitiam uma pequena reflexão sobre o atual momento do continente.

Antes de mais nada porque ambos vinham muito felizes. Ao colocar os pés no Brasil, Vargas Llosa acabara de receber o Nobel de Literatura, prêmio com que sonhara por muitos anos e que imaginava não ser mais possível receber. Já Ingrid exibia o sorriso de alívio de quem livrou-se de um doloroso e cruel cativeiro que durou mais de seis anos, período em que foi refém das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

Leticia Moreira - 4.nov.2010/Folhapress
Ex-senadora colombiana Ingrid Bettancourt durante sabatina com jornalistas da *Folha*
Ex-senadora colombiana Ingrid Bettancourt durante sabatina com jornalistas da Folha

Curiosamente, ambas as trajetórias estão marcadas por experiências num determinado lugar geográfico, a selva amazônica, ainda que em áreas e maneiras distintas.

Vargas Llosa é um apaixonado pela floresta. Em seu livro mais recente lançado no Brasil, "Sabres e Utopias" (Objetiva), conta como uma viagem que fez aos vinte e poucos anos para a região peruana do Alto Marañón marcou sua vida e sua obra. Para um garoto bem nascido e que crescera na cidade, a visita ao Peru selvagem permitiu que percebesse melhor seu país e abriu as portas de sua imaginação. Daí saiu a inspiração para, entre outros, um de seus clássicos, "Pantaleão e as Visitadoras".

Nos últimos anos, Vargas Llosa dedicou-se a estudar a trajetória de Roger Casement (1864-1916), diplomata britânico que passou um tempo na região do rio Putumayo, mais especificamente La Chorrera (o local pertencia ao Peru então, mas hoje faz parte do território colombiano), e denunciou as condições de vida e trabalho dos índios dali. A pesquisa de Vargas Llosa tinha em vista construir "El Sueño del Celta", romance que o peruano acaba de lançar nos países de língua hispânica. Ao comentar essa nova ida à floresta, o escritor a definiu como um lugar belo e duro, onde é possível perceber diferentes tipos de homens que compõem a América Latina.

Já Ingrid foi parar lá a contragosto. Sequestrada em 2002 na região de San Vicente del Caguán, enquanto fazia campanha para tentar eleger-se presidente de seu país, passou mais de seis anos movendo-se com a guerrilha pela selva. Sua experiência como prisioneira do grupo guerrilheiro está em "Não Há Silêncio que Não Termine" (Companhia das Letras), que acaba de ser lançado aqui. Na obra, Ingrid relata a crueldade do cativeiro no dia a dia, as relações de afeto que se construíram entre os desafortunados, as tentativas de fuga, até o dia do incrível resgate.

Em sabatina realizada pela Folha, Ingrid foi perguntada de modo específico sobre como se sentia na selva. E eis que, em meio a uma entrevista em que muito se falou de sofrimento, a colombiana começou a pintar um retrato bonito do que vira. O excesso de verde, a intensidade e a força da floresta, o cheiro do mato, a alegria ao ver uma flor. Como as Farc são formadas pelo campesinato colombiano, e seus exércitos são muito jovens --Ingrid falou em garotos entre 13 e 18 anos--, a experiência de observá-los em ação também ajudou-a a conhecer melhor os tipos que formam seu país.

Há, porém, pelo menos uma diferença radical entre os dois. Vargas Llosa, apesar de passar parte do ano na Espanha, é apaixonado pelo Peru, onde mantém uma casa e de onde vem a maior parte das referências para seus romances. Já Ingrid, depois de libertada, guarda profundo rancor da sociedade de seu país. Após receber críticas pelo fato de ter pedido uma indenização ao governo, deixou a Colômbia e radicou-se na França, onde vivem seu filho e sua mãe. Diz que ama seu país, mas que não vê condições de voltar a viver lá enquanto os colombianos não "mudarem de coração".

"El Sueño del Celta", que ainda não tem data certa para sair no Brasil, mas já pode ser importado, e "Não Há Silêncio que Não Termine" podem tratar de temas e datas diferentes. Mas ambos certamente expõem dramas e traumas atemporais da América Latina e que estão relacionados à floresta amazônica: a reação do homem diante da adversidade imposta pela natureza, histórias de heroísmo e crueldade, a variedade cultural do continente, a exploração histórica de indefesos e, no caso específico do livro de Ingrid, a formação do crime organizado a pretexto de uma utopia já há muito esquecida. Que ambos ajudem a pensar tanto nos índios que, apesar dos esforços de Casement em expor suas agruras, ainda vivem lá em más condições, quanto nos que ainda estão sequestrados pelas Farc e mantidos na selva colombiana.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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