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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

25/10/2011 - 07h00

E agora, "Clarín"?

Os ventos não são bons para a imprensa independente na Argentina. Com a vitória de Cristina Kirchner nas eleições de domingo, o avanço do governo contra os meios de comunicação que lhe fazem oposição, como os jornais "Clarín" e "La Nación", deve se intensificar.

Antes mesmo da votação do último domingo, os kirchneristas já haviam dito que levariam até o fim a aplicação da chamada "lei dos meios", que foi aprovada pelo Congresso em 2009, mas não em sua totalidade. Falta regularizar o artigo que obriga os grupos considerados "monopólicos" pelo governo a vender rádios e TVs.

A medida é um ataque ao "Clarín", grupo mais poderoso da mídia argentina, que possui emissoras, rádios e jornais, e com quem o governo está em guerra desde 2008. O "Clarín" é o maior jornal da Argentina, e vende uma média de 300 mil exemplares.

Desde então, a campanha do governo contra a publicação se deu de vários modos. Entre eles, a discriminação na repartição da verba para propaganda oficial, pressão para que os netos da proprietária do grupo, Herrera de Noble, fizessem um teste de DNA para saber se eram filhos de desaparecidos (ao final, não eram), um bloqueio contra a distribuição do jornal e o requinte de dedicar um programa da televisão pública, o "6,7,8", praticamente inteiro para criticar sua cobertura diária.

Além disso, o governo também se equipou com um aparato de mídia, incluindo meios estatais e privados, no qual a linha editorial é, em geral, exaltar o governo e demonizar o "Clarín".

A essas medidas, arbitrárias e anti-democráticas, o "Clarín" vem reagindo e parece legítimo que aguce sua postura crítica ao governo por conta das circunstâncias.

O problema, porém, é que parece muito tênue o limite entre a crítica e a tomada deliberada de uma posição combativa para defender os interesses da empresa. Nesse dilema, o principal prejuízo é a possibilidade de o jornal perder sua credibilidade jornalística.

Após a vitória arrasadora de Cristina nas eleições, com quase 54% dos votos, é hora de o "Clarín" se perguntar o que deve fazer, agora que terá mais quatro anos de kirchnerismo pela frente, no mínimo. Seguirá o tom bélico, correndo o risco de distorcer o noticiário para manter sua posição, ou amenizará o discurso, fazendo um jornalismo opositor e crítico, mas com responsabilidade?

A questão não é menor porque, em sua fúria para defender-se, o jornal cometeu excessos. Para dar um exemplo, se olharmos a cobertura feita pelo "Clarín" antes das votações primárias, em agosto, ficamos com a sensação de que a eleição de Cristina estava ameaçada, que poderia haver um segundo turno ou até uma virada de mesa. Hoje sabemos que nenhuma dessas hipóteses esteve nem perto de se concretizar.

Uma de suas manchetes da época dizia: "Primárias: as pessoas têm dúvidas, mas dizem que votarão". O resultado mostrou que esse título era mais do que forçado. A maior parte do eleitorado não parece ter tido dúvidas. Cristina alcançou um respaldo poucas vezes atingido no país.

Além disso, o jornal tem deixado sistematicamente de noticiar coisas positivas do governo Cristina, e ignorado iniciativas relevantes ou de utilidade pública. O mega-parque temático Tecnópolis, por exemplo, feito com dinheiro público e visitado por milhares de argentinos, foi praticamente ignorado pela publicação.

O jornal ultra-kirchnerista "Tiempo Argentino" fez um levantamento das capas negativas do "Clarín". O resultado foi uma "reportagem" que virou manchete do diário: "A presidenta que ganhou de 347 capas do Clarín'". Tratava-se de um levantamento de quantas manchetes contra Cristina o jornal tinha publicado nos últimos 15 meses.

O tom panfletário e de chacota da matéria era notório, mas é interessante ver, agora mais longe dos acontecimentos, como o "Clarín" realmente exagerou nas tintas em diferentes episódios, inclusive apelando para uma linguagem vulgar em alguns casos.

Entre elas, estavam: "Foi massiva a marcha contra o casamento gay" (contra a aprovação do matrimônio homossexual, uma iniciativa do governo), "Reação contra a jogada ultra-k de 'Cristina eterna'" ou "64% votaram em Macri e afundaram o kirchnerismo" (quando o prefeito de Buenos Aires ganhou a eleição na capital).

Nunca é demais lembrar que o "Clarín" e o governo foram grandes amigos no passado. Sócios na polêmica empresa Papel Prensa (uma outra novela), tiveram boas relações até 2008. No ano anterior, antes de deixar o governo, o ex-presidente Néstor Kirchner (morto em outubro de 2010) assinou a fusão das empresas Multicanal e Cablevisión. A operação deu ao grupo Clarín a liderança no mercado de TV a cabo.

Além de ser o maior jornal do país, o "Clarín" é a principal referência que se tem mundo afora por quem busca notícias da Argentina.

É preocupante que um diário dessa estatura esteja direcionando suas armas para uma guerra política e não se concentrando tão somente no jornalismo. Como ficará sua credibilidade futura, se amanhã muda o governo do país? Voltarão a fazer um jornalismo "normal"?

Não seria melhor concentrar o enfrentamento com o governo dentro da esfera da Justiça, e manter em sua linha editorial uma posição mais independente e balanceada, pelo bem da democracia?

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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