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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

01/11/2011 - 07h00

Sorriso macabro

Três dias depois da "euforia K" pela vitória de Cristina Kirchner nas eleições, apoiadores da presidente e de sua política de direitos humanos acorreram a um Fórum no bairro portenho de Retiro, na última quarta-feira, para acompanhar a leitura das sentenças contra 16 repressores da última ditadura militar (1976-1983).

Como se sabe, Cristina dá continuidade à política de seu falecido marido e antecessor, Néstor Kirchner, de julgar militares de diversas patentes que estiveram envolvidos em crimes do Estado contra a população civil e contra guerrilheiros que resistiam ao regime. Para isso, foram anuladas leis dos anos 80 que os livravam de serem investigados e presos.

A sessão teve vários momentos que expressam como está dividida a sociedade argentina e como, para muitos, segue aberta a ferida dos anos 70. Havia euforia do lado de fora por parte de militantes, tristeza entre os familiares dos réus, e um silêncio sepulcral por parte destes.

A cena mais impressionante da noite, porém, foi o momento em que se anunciou a sentença de Alfredo Astiz, um dos mais famosos e cruéis repressores da ESMA (Escola Mecânica da Armada), centro de torturas e execuções por onde passaram cerca de 5 mil prisioneiros --dos quais menos de 5% sobreviveram.

Astiz, conhecido com o "o anjo loiro da morte", foi condenado à prisão perpétua. Enquanto escutava a decisão que praticamente sela seu destino daqui para a frente, o repressor abriu um imenso sorriso, com ares de sarcasmo.

"É de se perguntar se adianta condenar um homem assim. Trata-se de um psicopata que não sabe o que significam os crimes que cometeu e muito menos o que é essa pena. Não sei se é realmente uma condenação, porque não há ninguém ali, é uma pessoa doente", disse à Folha o jornalista Uki Goñi, autor de um livro sobre o personagem, "El Infiltrado" (Sudamericana).

O riso de Astiz torna ainda mais cruéis as ações pelas quais ficou famoso, pois expõe a frieza com que serviu à repressão.

Entre os crimes nos quais está envolvido, figuram o sequestro e a morte de uma garota argentina-sueca de 17 anos, Dagmar Hagelin, presa por engano no lugar de uma líder montonera; duas freiras francesas, Alice Domon e Leónie Duquet; e de uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, Azucena Villaflor, entre outros.

A trajetória de Astiz começou cedo. Vindo de uma família ligada à Marinha, tinha 23 anos quando ocorreu o golpe de 1976 e nunca teve dúvidas de que gostaria de ser militar.

Quando foi designado para atuar na ESMA, em 1977, passou a integrar o Grupo de Tarefas 332, que organizava sequestros de opositores. Uma vez presos no centro de detenção, eram em geral torturados e executados. Dali saíam os famosos "vuelos de la muerte", em que os prisioneiros eram jogados no rio da Prata.

A operação contra as Mães é talvez a mais horripilante, porque o alvo não eram combatentes da resistência, mas senhoras, cuja atuação era reivindicar pacificamente a vida de seus filhos desaparecidos.

Astiz apresentou-se ao grupo como sendo parente de um desaparecido. Carentes devido à ausência de seus filhos, as mulheres o acolheram carinhosamente, e lhe deram o apelido de "el rubito", por conta de seus volumosos cabelos claros.

No dia 8 de dezembro de 1977, as mães e outros militantes de direitos humanos estavam reunidos numa igreja, e Astiz meteu-se entre eles. Distribuiu abraços, que na verdade eram uma sinalização para que seus companheiros sequestrassem as pessoas marcadas. As prisões ocorreram na saída do local e nas casas de algumas delas, dias depois.

Uma das vítimas foi Azucena Villaflor, nada menos do que uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio. Foi levada à ESMA e depois, jogada no rio, através de um dos "vuelos". Tinha 53 anos.

Já Dagmar Hagelin foi presa na rua, tentou fugir, mas Astiz a acertou com um tiro nas costas. Caiu ferida e foi levada a um carro. Testemunhas oculares relatam que a garota ainda estava viva e teriam visto seus braços tentando evitar que a tampa do bagageiro onde foi metida se fechasse.

O anjo da morte ainda tentou infiltrar-se num grupo de exilados argentinos na França, mas foi descoberto e fugiu. Na guerra das Malvinas, ficou encarregado de um comando e acabou preso pelos ingleses. Os governos da França e da Suécia, então, tentaram pedir sua extradição para julgá-lo pelos crimes contra cidadãos de seus países, mas a Inglaterra acabou decidindo devolvê-lo à Argentina.

Os europeus não desistiram dele. Em 1990, a França o julgou em ausência e condenou-o à prisão perpétua. Também foi condenado na Itália. Com isso, passou a evitar sair da Argentina, com medo de ser preso e julgado no exterior.

Em seu país, por conta das leis de Obediência Devida e Ponto Final, decretadas por Alfonsín em 1986/1987, Astiz permaneceu longo tempo impune.

Era conhecido por ser um bon vivant, curtia a noite, esquiava no inverno e ia a praias no verão, onde reforçava seu bronzeado.

Às vésperas de completar 60 anos, Astiz finalmente recebeu sua condenação. "É positivo que vá preso agora, mas não podemos esquecer que ele viveu mais de trinta anos livre. A Justiça precisava ter sido mais rápida, esses homens logo estarão no fim da vida", diz Goñi.

De fato, entre os 16 condenados pelos massacres da ESMA, Astiz era um dos mais jovens. Outro cruel repressor, Jorge Acosta, que dirigiu o centro de torturas e também só foi condenado agora, está hoje com 70 anos.

O fato de a Justiça argentina estar acertando contas com seu passado ditatorial é positivo e pode ser considerado exemplar na América Latina.

Porém, há um outro lado da moeda que também assusta, obviamente que não tanto quanto as atrocidades de Astiz e seu sorriso cruel.

A pequena multidão que estava do lado de fora do fórum vibrava com as condenações, xingando e esbravejando contra os réus. A euforia por cada perpétua anunciada parecia a de uma torcida fanática após um gol de seu time. Uma das Mães mais conhecidas, Tati Almeida, pulava e comemorava.

O espetáculo lembrava as cenas de execuções na Idade Média, quando o povo acorria para assistir a agonia e a morte dos condenados.

Numa noite certamente histórica na Argentina, os limites entre a Justiça e um desejo bárbaro de vingança pareciam muito tênues.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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