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OPINIÃO

Primeira medalha da Rio-2016 deveria ser dada a um denunciante

Seria difícil adivinhar que o herói dos Jogos Olímpicos do Rio provou ser um russo grisalho e de bigode, perto dos 60 anos, que usou seu brilhantismo científico não para buscar a cura de uma doença, mas para ajudar os russos a conquistar medalhas olímpicas ao dissolver substâncias de melhora de desempenho de uso proibido em uísque Chivas e vermute.

Um herói que, na calada da noite, substituía amostras de urina contendo doping por amostras limpas, para que os atletas envolvidos não fossem apanhados nos exames antidoping.

Se ele não parece ser um personagem pelo qual torceríamos, bem, você não está levando em conta o mais importante, nesse capítulo da já antiga história do doping esportivo. Porque se a saga deve um dia chegar a um final feliz, necessitará de mais heróis como esse. Heróis defeituosos, sim, mas que ainda assim fazem contribuições imensuráveis para o esporte.

O herói do Rio é Grigory Rodchenkov, antigo diretor do laboratório antidoping oficial da Rússia, que ajudava atletas a se doparem e a encobrir seu uso de drogas porque seu governo assim instruiu. O que o torna um herói para o movimento olímpico atual — um dos heróis do momento, eu diria — é que Rodchenkov teve a coragem de denunciar o programa de doping patrocinado pelo Estado russo. Ele revelou os detalhes ao "New York Times" em maio, levando a Agência Mundial Antidoping (AMA) a investigar suas afirmações e, dois meses mais tarde, validá-las em um relatório tornado público na segunda-feira.

Porque Rodchenkov contou sua história, talvez haja menos praticantes de doping entre os participantes da Olimpíada do Rio, no mês que vem. Seus esforços também podem estimular novos denunciantes a se apresentar e expor trapaças esportivas. O momento pode ser marcante para o esporte olímpico, em sua já antiga batalha contra o doping.

Doping na Russia

Mas isso só acontecerá se o Comitê Olímpico Internacional (COI) apoiar esses esforços de denúncia e punir a Rússia devidamente, agora que o mundo sabe que o governo russo estava envolvido no programa de doping como um todo. Mesmo importantes funcionários do governo russo estiveram envolvidos no esquema que visava ao domínio do esporte olímpico, e o ministro assistente do Esporte decidia pessoalmente que testes de doping positivos deveriam ser encobertos.

Thomas Bach, o presidente do COI, e o conselho executivo da organização se reuniram na terça-feira para começar a discutir o destino da Rússia, anunciando ao final da reunião que o comitê estava considerando suas opções legais de punição e havia formado uma comissão disciplinar com cinco membros para avaliar os fatos do caso.

Mas eis o que a reunião anunciou de mais importante: depois que dados e mais dados sobre os detalhes sombrios do doping patrocinado pelo Estado russo foram revelados no relatório de 97 páginas que a AMA divulgou na segunda-feira, Bach e o COI agora decidirão se algum atleta russo poderá competir no Rio.

Antes da reunião, Bach foi duro em suas declarações.

"As constatações do relatório mostram um ataque chocante e sem precedentes à integridade do esporte e dos Jogos Olímpicos", ele afirmou em comunicado, na segunda-feira. "Portanto, o COI não hesitará em tomar as medidas mais duras possíveis contra qualquer indivíduo ou organização envolvidos".

A federação de atletismo da Rússia foi excluída dos Jogos depois de revelações de doping patrocinado pelo Estado em favor de seus atletas, divulgadas em relatório da AMA em novembro — o primeiro dos dois relatórios da AMA sobre a trapaça generalizada no esporte russo.

A base dessa investigação: informações de denunciantes.

Maxim Shipenkov/Efe
SHP02 MOSCÚ (RUSIA) 10/11/2015.- Miembros de seguridad vigilan la entrada del 'Centro Federal Científico de Cultura Física y Deportes' en donde se encuentran los laboratorios del país donde se llevan a cabo los controles antidopaje y cuyo responsable es Grigory Rodchenkov en Moscú (Rusia) hoy, 10 de noviembre de 2015. Rusia ha rechazado tajantemente la posible exclusión de sus atletas de los Juegos Olímpicos de Río de Janeiro en 2016 recomendada hoy por la Comisión Independiente de la Agencia Mundial Antidopaje (AMA). EFE/Maxim Shipenkov ORG XMIT: SHP02
Membros da segurança da entrada do Centro Federal Científico de Cultura Física e Esportes, na Rússia

Os heróis naquele caso foram Vitaly Stepanov, que costumava trabalhar na agência antidoping russa, e sua mulher Yulina Stepanova, corredora que havia usado doping sob o sistema russo. Eles gravaram secretamente atletas e treinadores russos falando sobre seu uso de doping, e entregaram essas informações e contaram suas histórias à rede de TV alemã ARD, que em 2014 exibiu um documentário muito assistido sobre o doping na Rússia.

Com seu filho pequeno, os Stepanov fugiram da Rússia e estão vivendo nos Estados Unidos, temendo por suas vidas, e com bons motivos. Ao fazer a coisa certa e expor o programa russo de doping, eles se colocaram em oposição a um país no qual vencer a qualquer custo é o lema. Rodchenkov assumiu o mesmo risco ao falar contra a máquina estatal de doping russa.

Sabedor disso tudo, o COI deveria impor à Rússia uma exclusão rápida e severa — na terça-feira, a organização disse que estava considerando essa possibilidade —, mas fazê-lo requer coragem. É preciso que alguém dê apoio a esses denunciantes, para que os esforços daqueles que se arriscaram a falar signifiquem alguma coisa, e para que mais atletas se sintam confortáveis em se pronunciar sobre o lado sombrio do esporte.

As agências antidoping de pelo menos 10 países, entre os quais Estados Unidos, Alemanha e Canadá, solicitaram que o COI exclua toda a delegação russa dos Jogos do Rio. Alguns atletas que não usam doping também se pronunciaram.

"Como atleta que vai ao Rio, eu não gostaria de competir contra nadadores russos, porque não confio em que eles não estejam usando doping", disse Kirsty Coventry, do Zimbábue, vencedora de dois ouros olímpicos e membro de uma comissão de atletas do COI, em entrevista telefônica.

Bach e o COI deveriam excluir a delegação russa da Olimpíada. Essa seria a maneira mais simples de afirmar um ponto. Ou poderiam fazer o que o COI faz melhor, e deixar o trabalho sujo para as federações esportivas internacionais. As federações ficariam encarregadas de distinguir, entre a massa de trapaceiros russos, os atletas limpos, e autorizar que compitam no Rio, em base de caso a caso. Já que há mais de 25 federações envolvidas, o processo demoraria a vida toda.

O que quer que Bach faça, ele deveria pelo menos reconhecer o valor dos denunciantes, nessa confusão toda, e agradecê-los por seu trabalho. Sem eles, atletas russos usuários de doping muito provavelmente conquistariam medalhas no Rio — possivelmente apenas para perdê-las anos mais tarde quando os testes antidoping enfim os apanharem. (Isso não significa que atletas dopados de outros países não venham a vencer no Rio.)

Também seria um toque agradável que Bach reconhecesse os rombos gritantes do sistema antidoping, rombos que permitiram que os russos trapaceassem com tamanha audácia, e apresentasse um plano para uma organização antidoping verdadeiramente independente, com a missão de realizar todos os testes e acompanhamento. Hoje sabemos que países individuais envolvidos nos exames antidoping de seus atletas são facilmente corruptíveis.

A troca de amostras de urina realizada por Rodchenkov durante as madrugadas, nos Jogos de inverno de Sochi em 2014, foi apenas um retrato da duplicidade russa. O esquema mais amplo, muito organizado, faz o doping de Lance Armstrong, que a Agência Antidoping dos Estados Unidos certa vez descreveu como "o mais sofisticado, profissional e bem sucedido programa de doping esportivo que o mundo já viu", parecer um trabalho escolar de química conduzido por alunos de segundo grau.

O COI está diante daquele que talvez seja o maior escândalo de doping da história do esporte. Os denunciantes esperam o resultado, de respiração suspensa. Os russos e os atletas limpos também.
Enquanto isso, Bach está sentado diante de seu laptop, criando o final da peça da qual ele pode ser o herói.

Os Jogos Olímpicos do Rio estão a menos de três semanas de distância. É bom que ele digite rápido.

Doping em Sochi

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