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13/09/2002 - 14h42

"América Latina nunca foi prioridade para Bush", diz professor

SILVIA SALEK
da BBC, nos EUA

Ao dizer que a América Latina seria uma prioridade de seu governo, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, estava se referindo apenas ao México e a Cuba, segundo John Coatsworth, diretor do Centro Rockefeller de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard.

"O resto da região nunca teve importância para Bush", disse Coatsworth, que é considerado um dos principais especialistas em América Latina no mundo.

Segundo o professor, quando Bush declarou que trabalharia pela melhora das relações com seus vizinhos de continente estava preocupado apenas em agradar eleitores latino-americanos.

Coatsworth concedeu essa entrevista à BBC Brasil em seu escritório na Universidade de Harvard, que fica em Cambrigde, Massachussetts.

BBC - Quando Bush assumiu, dizia que a América Latina seria uma prioridade, mas a região parece ter saído dessa lista de prioridades após o 11 de setembro. O que poderia estar acontecendo nesta relação e não está por causa da guerra contra o terrorismo?

John Coatsworth - Antes, precisamos deixar claro que Bush estava se referindo apenas ao México e a Cuba. Não tinha nada a ver com o resto da América Latina ou pelo menos muito pouco. Foi uma estratégia eleitoral motivada pela eleição e não por uma visão estratégica sobre o papel dos Estados Unidos na região. Bush queria mostrar para os eleitores de origem cubana e mexicana seu interesse pela região.

O presidente mexicano foi o primeiro chefe de Estado a se encontrar com Bush após as eleições nos Estados Unidos. Foi um encontro simbólico em que eles fecharam um acordo inicial em torno de uma pauta que até poderia ter algum impacto em países como o Brasil, mas que estava muito centrada em assuntos de interesse do México como imigração, disputas comerciais relacionadas ao Nafta e à guerra contra o narcotráfico. Foi esse tipo de negociação que deixou de avançar desde o 11 de setembro.

BBC - O senhor está dizendo que quando o Brasil se sentia incluído nas prioridades de Bush estava enganado?

Coatsworth - De certa forma, sim. No entanto, pode-se dizer que, apesar de o Brasil nunca ter estado no topo das prioridades, a aprovação da Trade Promotion Authority talvez, no longo prazo, seja algo muito importante para a América Latina e para as relações entre os Estados Unidos e o Brasil. A Trade Promotion Authority, que também é chamada de fast-track (ou via rápida), permite que o presidente negocie uma área de livre comércio nas Américas, por exemplo, e submeta o tratado ao Congresso sem possibilidade de emendas.

BBC - Mas o presidente Bush lutou muito por isso. Isso não demonstra que ele estava considerando a América Latina como um todo como uma prioridade?

Coatsworth - Essa administração não lutou por isso por causa do interesse na América Latina, mas sim por causa da importância de um novo tratado comercial internacional que é do interesse do governo. Mas a criação da Alca também fazia parte da pauta e isso é muito importante.

A aprovação do fast-track abre caminho para que o governo volte atrás na direção de uma posição mais comprometida com uma área de livre comércio. Mas devido à guerra contra o terrorismo e talvez em breve contra o Iraque, não está claro para mim se esse assunto chegará a subir tanto os degraus de prioridade para tornar isso possível.

BBC - Como o senhor chegou a essa conclusão, já que Bush se referiu à América Latina e não apenas ao México ou a Cuba?

Coatsworth - Pelas ações, mais do que pelas palavras. O governo enviou dois sinais muito ruins para a América Latina. O primeiro por meio de uma série de nomeações, como a de um americano de origem cubana para secretário assistente de Estado para assuntos interamericanos. O sinal aí é de que a política externa para a América Latina está intimamente relacionada à política interna americana e com a obsessão da comunidade cubana nos Estados Unidos com Cuba. Em parte, isso tem a ver com os 55 votos que Flórida e Nova Jersey representam nas eleições presidenciais. Outros americanos de origem cubana também foram nomeados para cargos importantes.

O outro sinal negativo foi uma série de medidas protecionistas que pareciam até ter o Brasil como alvo. Tivemos a Farm Bill, que aumentou os subsídios a produtos agrícolas americanos que o Brasil exporta para os Estados Unidos, e também as medidas antidumping que vieram para proteger uma série de produtos na indústria siderúrgica americana, que acabaram sendo revistas posteriormente.

Esse tipo de decisão deixou claro que o governo estava disposto a sacrificar o relacionamento com vizinhos importantes para servir a esses interesses políticos domésticos.

BBC - Falando em sinais negativos. O que explica a decisão do governo americano de emprestar para o Uruguai, apoiar o empréstimo para o Brasil e continuar deixando a Argentina agonizar?

Coatsworth - Isso é um sinal de que eles estão voltando atrás. A posição inicial desse governo era de que os países latino-americanos deveriam resolver sozinhos seus problemas sem depender da ajuda dos Estados Unidos ou de instituições internacionais. Se países da região estão seguindo políticas erradas e ainda assim bancos e agências internacionais concedem empréstimos para estes países, cientes de que essas políticas podem terminar em desastre, devem assumir o ônus por isso. Se os Estados Unidos socorrem esses países constantemente, estariam, na verdade, apoiando políticas erradas. Estariam criando um precedente que incentiva a irresponsabilidade.

BBC - E no caso da Venezuela, o senhor acredita que os Estados Unidos tiveram alguma participação no golpe para depor Hugo Chávez?

Coatsworth - Temos que ser justos com esse governo. Acho que a maioria foi pega de surpresa. É verdade que membros da oposição recebiam dinheiro do governo americano através da Endowment for Democracy, que distribui dinheiro para organizações que defendem direitos humanos e a democracia.

Além disso, um grupo de opositores de Chávez esteve em Washington duas semanas antes do golpe e parece que eles foram bem recebidos. Não apenas isso. Receberam sinais desencontrados desse governo. Eu não sei se isso foi proposital. Quando alguém chega até você, e você é uma autoridade americana, e dizem para você: 'não gosto do governo que está no poder no meu país; quem me dera depor esse presidente', e você responde dizendo: 'se você interromper os processos constitucionais no seu país, temos 30 tratados no sistema americano contra isso. Não haverá ajuda externa, tudo será suspenso, a OEA vai ficar contra vocês, vocês vão ficar muito mal. Portanto, o que quer que vocês estejam pensando em fazer, não dêem um golpe'.

A outra forma é dizer: 'também achamos ele muito ruim, um problema, gostaríamos que houvesse algo que pudéssemos fazer, queremos ajudar. Algumas autoridades tomaram a primeira atitude, outros, a segunda, e esse pessoal voltou para a Venezuela com sinais desencontrados.

BBC - Será que esses sinais desencontrados incentivaram o golpe?

Coatsworth - Não sei dizer se isso incentivou o golpe, mas a verdade é que se a posição de Washington tivesse sido mais clara, mais coerente, os participantes teriam pensado duas vezes.

BBC - O problema é que essa ambigüidade continuou mesmo depois do golpe?

Coatsworth - Sim. Nosso secretário assistente para assuntos interamericanos estava no telefone com o líder do golpe, que esteve um dia no poder, tentando aconselhá-lo a fazer o novo governo parecer mais democrático. Ele estava aconselhando ele a não dissolver o Congresso e a não demitir toda a Suprema Corte, o que foi um bom conselho, mas pareceu ter sido calculado como um esforço de colaboração com um regime inconstitucional e como uma maneira de dar aos Estados Unidos uma oportunidade de apoiar esse regime, quando deveria estar se opondo a ele. Eu acho que não é verdade que o golpe foi planejado em Washington como muitos dizerm, mas a resposta americana foi incoerente.

BBC - O que explica isso? Será que se preocupam tão pouco com a América Latina que nem se deram ao trabalho de coordenar uma resposta coerente?

Coatsworth - Essa é uma teoria muito boa. Eu acho que as autoridades não estavam esperando isso, não estavam dando prioridade a isso e também, em alguns casos, tinham simpatia pela oposição e, para falar a verdade, alguns ali têm uma longa tradição de não gostarem de democracia quando ela é inconveniente.

BBC - O Brasil reclama que os Estados Unidos defendem o livre comércio, mas que dificultam o acesso de muitos produtos brasileiros ao mercado americano. Se a Alca voltar a ser discutida, como o senhor acha que o Brasil deveria tentar dobrar essa resistência?

Coatsworth - A visão predominante dessa administração é de que os Estados Unidos não precisam fazer nenhuma grande concessão para o Brasil. Dizem que, essencialmente, temos duas coisas a oferecer em troca: o mercado americano para os produtos da região e também capital.

Eles acham que o acordo de livre comércio funcionaria como um selo de qualidade que diria para gerentes de fundos americanos e investidores de todo o tipo que os signatários desse acordo merecem agora confiança. O capital seguro poderia ir para lá porque eles não vão mudar a política de uma hora para a outra ou fazer qualquer coisa maluca. Então, o que a administração gostaria é de conseguir mais concessões da América Latina em troca de um número menor de concessões da nossa parte, mas com a promessa de que o mercado levaria novos fluxos de capital para a região. Essa seria nossa moeda de troca.

BBC - É uma visão que coloca o Brasil numa posição muito arriscada...

Coatsworth - Sim. Especialmente porque os fluxos de capital para América Latina são muito voláteis. Não sei dizer se esse selo de aprovação dos Estados Unidos seria suficiente para que o Brasil e outros países assinem um tratado que não inclua nem mesmo algumas concessões nos produtos principais que eles queiram vender para os Estados Unidos. Eles terão que defender seus próprios interesses, mas sem perder de vista que essa associação maior com os Estados Unidos pode ser boa para eles de outras formas.

BBC - E o senhor acha que o governo americano está errado em pensar assim?

Coatsworth - Realmente, essa visão faz sentido, mas no caso argentino, que vem sendo tão discutido em Washington, não está claro que as políticas econômicas eram irresponsáveis. A maior parte do problema fiscal da Argentina veio com a privatização da previdência social, que foi uma reforma neoliberal totalmente de acordo com o chamado Consenso de Washington. A política de paridade entre o peso e o dólar foi um erro, mas foi endossada pelo FMI. De certa forma, temos o caso de um país que estava tentando enfrentar problemas muito difíceis e fizeram um esforço seguindo políticas defendidas pelo FMI.

BBC - Por que essa política foi mudar no caso do Brasil e do Uruguai, e não no caso da Argentina, que era até mais grave?

Coatsworth - O governo sofreu muitas pressões da comunidade financeira americana no caso do Brasil e do Uruguai. No caso da Argentina, ninguém na administração Bush se importa muito com o que acontece na Argentina. É por isso que deixaram a Argentina afundar sem nenhuma assistência e ainda por cima com autoridades americanas dando declarações que só pioravam a situação.

Além disso, o governo ainda acredita que não deve recompensar políticas ruins. E, de fato, o presidente argentino ainda não fez nada para enfrentar os problemas fundamentais que terá que enfrentar se quiser que o país se recupere. No caso do Brasil e do Uruguai, é como se estivessem recompensando boas políticas.

BBC - O senhor acha que as políticas adotadas no Brasil são boas?

Coatsworth - A questão aqui é se são sustentáveis. Isso vai depender do mercado internacional. Acho que haverá uma recuperação no Brasil no fim do ano, apesar dos problemas.

BBC - O senhor, que acompanha a América Latina há tempo tempo, como vê esse momento de instabilidade? Há algo de comum entre as crises?

Coatsworth - Eu acho que os países da região estão sofrendo as consequências de duas décadas de baixo crescimento. Em muitos países, salários estão mais baixos hoje do que no fim dos anos 70. Mesmo no México, o desempenho não foi tão bom.

Você tem eleitores que estão muito preocupados com a falta de crescimento. Os eleitores, com consistência inacreditável, punem políticos que deixam a inflação sair de controle, que levam o país à recessão. Essa insatisfação que se vê em alguns países é que um político é substituído pelo outro e os eleitores já não têm mais quem punir. É o que se vê na Venezuela. O fenômeno Chávez é isso. E se você fala com argentinos nas ruas, eles poderiam ser venezuelanos, falam da mesma maneira da incompentência, da corrupção da classe política.

BBC - O senhor está dizendo que a esquerda na Venezuela decepcionou os eleitores. Essa sua teoria sugere que se a esquerda no Brasil vencer, tem muitas chances de decepcionar eleitores também?

Coatsworth - Eu acho que se a esquerda conseguir capitalizar o fato de que houve pouco crescimento no Brasil e ganhar as eleições vai ter que ser muito clara sobre suas prioridades e não fazer promessas que não podem ser cumpridas. Se chegar ao poder e não conseguir gerar crescimento para distribuir melhor a renda, os eleitores vão punir a esquerda nas eleições seguintes e esse será um fracasso histórico. Esse é, provavelmente, o único período em que a esquerda brasileira tem a oportunidade de chegar ao poder em condições moderadamente favoráveis, ou seja, através de eleições, sem a perspectiva de um golpe militar.

A grande razão do fracasso da esquerda tem sido sua incapacidade de cuidar da economia. Se a esquerda seguir uma política econômica responsável, enfrentar o déficit social e expandir a economia, terá a oportunidade de ficar no poder por décadas. Se falhar, por não conseguir equilibrar essas duas coisas, vai fracassar. Inflação pune os eleitores de esquerda, os assalariados. É por isso que os eleitores punem os populistas quando eles gastam demais e trazem a inflação de volta.
 

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