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20/10/2003 - 12h37

Líder plantador de coca promete chegar à Presidência da Bolívia

VALQUÍRIA REY
da BBC, em La Paz

O mais importante líder da oposição boliviana, o deputado indígena Evo Morales, tem toda a certeza de que será o próximo presidente da República. Em entrevista à BBC Brasil, ele disse que não há qualquer possibilidade de "barrar a vontade popular".

De acordo com o líder sindical dos mais de 30 mil plantadores de coca da região do Chaparre, oeste da Bolívia, o seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), chegará ao poder pela via democrática.

Ele lembra que, no ano passado, quase chegou lá. Não foi eleito presidente porque o Congresso optou por Gonzalo Sánchez de Lozada. Morales, que defende há mais de 20 anos a produção de coca dos indígenas bolivianos, não se sente representado pelo novo presidente, Carlos Mesa.

No entanto, Morales promete não enfrentá-lo. Mas alerta que setores da população boliviana estão se preparando para uma luta armada.

BBC Brasil - Que avaliação pode ser feita da posse do presidente Carlos Mesa? Seu partido, o MAS, está satisfeito com as medidas anunciadas por ele?

Evo Morales - Não estamos verdadeiramente satisfeitos, porque ele não pertence a nenhuma organização social. Ele fazia parte do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), o mesmo partido do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Mas esta era a única saída constitucional para o país. Há certa satisfação, sim, porque conseguimos fazer Gonzalo Sánchez de Lozada, símbolo do neoliberalismo e da corrupção, renunciar.

BBC Brasil - Em inúmeras ocasiões, o senhor tem afirmado que acredita apenas em um governo do povo. De que maneira o povo pode chegar a ser governo na Bolívia?

Morales - Nós vamos chegar ao governo pelas vias democráticas. Isso é possível porque no ano passado ganhamos as eleições. Mas, lamentavelmente, roubaram nosso triunfo. No Congresso, Sánchez de Lozada acabou sendo eleito.

BBC Brasil - Carlos Mesa conseguirá governar sem a participação dos partidos políticos?

Morales - Isso é um pouco difícil, não? Mas precisamos acreditar na sua boa intenção. A bancada do MAS vai fiscalizar o poder Executivo e os partidos seguirão participando do poder Legislativo. Mas o mais importante vai ser o controle social do povo.

BBC Brasil - Antes da renúncia de Gonzalo Sánchez de Lozada, o senhor estava defendendo um governo indígena-parlamentar. Segue com a mesma proposta, ou o MAS sente-se representado no governo de Carlos Mesa?

Morales - Não nos sentimos representados, mas não vamos enfrentar o governo de Carlos Mesa. Queríamos a renúncia de Sánchez de Lozada e, de acordo com a nossa Constituição, Mesa teria de assumir a Presidência. Como acreditamos no processo democrático, nos temas sociais e estruturais, vamos apresentar projetos, porque a posição do MAS é a de governar desde o Congresso.

BBC Brasil - Uma das principais bandeiras do presidente Carlos Mesa é comandar a realização de um referendo, para que a população decida se quer ou não exportar o gás natural boliviano. O senhor acredita que esta seja a melhor solução para resolver este problema?

Morales - O referendo é esta grande mobilização que expulsou Gonzalo Sánchez de Lozada da Presidência e fez com que ele fugisse para os Estados Unidos. Este é o melhor referendo. Se vamos aos Estados Unidos pelo Chile, se vendemos ao Chile, precisamos nos decidir. A idéia é que consigamos definir as perguntas de forma consensual. As pessoas deverão responder por onde, quando e como vamos vender isso.

BBC Brasil - O MAS está defendendo uma revisão dos contratos de venda do gás natural. Neste contexto, o senhor acredita que os contratos firmados com a Petrobras no governo de Fernando Henrique Cardoso também passarão por uma revisão?

Morales - A informação que tenho é que a Petrobras é uma empresa do Estado brasileiro. A Petrobras não é uma transnacional. Então, o Estado boliviano deve manter esta classe de contrato com os Estados correspondentes. Acho que o Estado boliviano pode dar, inclusive, uma espécie de contrato com as transnacionais, de maneira que elas não sejam donas do gás e do petróleo.

BBC Brasil - Algumas pessoas na Bolívia o comparam ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O senhor se sente incomodado com as comparações?

Morales - Li em uma reportagem que os pais dele eram analfabetos. Isso é uma coincidência, porque meus pais também eram analfabetos. Meu pai escrevia e lia um pouco, mas minha mãe é analfabeta. Lula vem da luta dos trabalhadores, e eu, da luta dos camponeses e indígenas. Então, há sim coincidências entre nossas vidas e, talvez por isso, penso que estou preparado para ser presidente. Eu não sei se gosto desse tipo de comparação, mas elas me confortam. Não acredito que um presidente precise ser um general, um médico, um advogado, um jornalista. Mas, sim, um camponês, porque somos nós que conhecemos a vida do povo. Não apenas conhecemos, mas temos vivido com o povo.

BBC Brasil - Durante as recentes manifestações populares, o senhor afirmou que, caso Gonzalo Sánchez de Gonzalez não renunciasse, haveria a possibilidade de ser iniciada uma luta armada no país. O que está ocorrendo na Bolívia? O povo já está armado?

Morales - Se o império ou alguns militares tivessem buscado uma saída autoritária a esse conflito, acredito que poderia ter se iniciado uma guerra civil na Bolívia. Eu tenho muito medo. Não estou de acordo e nunca defendi a luta armada. Mas, em alguns setores, como em La Paz, alguns companheiros estão falando muito em luta armada. Eu tenho muito medo de que o governo dos Estados Unidos busque uma saída autoritária, porque, eleitoralmente, não há mais quem possa nos parar. Tudo que está acontecendo agora está criando mais consciência na população. Vamos seguir nesta luta pacífica, porque acreditamos ser importante chegarmos primeiro às estruturas do Estado para depois transformá-las. Nós não pensamos em fazer a revolução primeiro, ou nos armar. Jamais disse que vamos fazer uma luta armada. Tenho medo de que, com uma saída autoritária, não vá mais haver Parlamento, nem as instituições democráticas, nem a resistência. Eu estou seguro de que o povo pode levantar-se. Tenho conversado com alguns companheiros, jovens principalmente, que estão defendendo a luta armada para que os ricos jamais tenham o poder. Nossa luta é eleitoral, mas sem estar colocando freio neste tipo de lutas que defendem alguns companheiros do campo.

BBC Brasil - O senhor continua recebendo ameaças de morte?

Morales - Tenho ouvido muitos companheiros jovens que dizem ter escutado que há muitas ameaças contra a minha vida. Eles dizem: se matam Evo, os primeiros que vamos matar aqui é o prefeito e o padre. Com certeza, há padres muito inclinados à direita. E é assim. Esse é o tipo de mensagem dos jovens no campo. É bárbaro. Outros companheiros dizem: Evo, se te matam, vai haver luta armada. Vamos fazer o maior levante da história deste país. Mas eu não tenho guardas-costas, sou uma pessoa sozinha, sou solteiro.

BBC Brasil - Na sua opinião, os Estados Unidos ficaram satisfeitos com o desfecho que foi dado ao recente conflito?

Morales - Quando as democracias não servem às políticas do império, o próprio império incentiva um golpe de Estado. Agora que nós, índios e indígenas somos poder político e estamos crescendo como poder político, é possível que eles façam alguma coisa contra a nossa democracia. As ditaduras sempre estiveram a serviço dos Estados Unidos. Na Venezuela, por exemplo, a todo momento querem derrocar Hugo Chávez, e tudo é feito a partir dos Estados Unidos. Agora, eles estão acompanhando muito o que está ocorrendo na Bolívia.

BBC Brasil - O senhor pretende concorrer às próximas eleições presidenciais?

Morales - Evo Morales será presidente. O MAS será governo e teremos o poder que necessariamente tem de ser do povo. Acredito muito no poder do povo e nos movimentos sociais. Para isso, tem de haver transparência dos ativistas do Estado, participação efetiva, uma democracia participativa que decida, que todos tenham o direito de decidir mediante um referendo, uma consulta.

BBC Brasil - O MAS é um movimento marxista?

Morales - Eu resgato muito alguns princípios do marxismo e do leninismo. Mas aqui não queremos importar ideologias. Trata-se de recuperar as formas de vivência dos povos indígenas. No movimento indígena, vive-se em coletividade, ou em comunidade de reciprocidade e solidariedade, na redistribuição da riqueza.

BBC Brasil - Como o senhor avalia o governo do presidente Lula no Brasil?

Morales - Estive na posse do Lula, conversei com ele em duas ocasiões, durante o Fórum Social Mundial de Porto Alegre e também nos encontramos em Cuba. Parece um governo muito interessante. Lula e seu gabinete estão decididos a defender os pobres, com a aplicação do programa Fome Zero. A posição do Brasil com relação à Organização Mundial do Comércio (OMS) também merece nosso apoio.

BBC Brasil - Os brasileiros não têm esta tradição, esta cultura de usar a folha de coca? Por que a coca é tão importante para os bolivianos?

Morales - A coca é um produto tão essencial, tão sagrado para as culturas indígenas bolivianas. A coca é praticamente a essência da nossa cultura. A coca, em seu estado natural, não causa dano à saúde humana. Isso diz a Organização Mundial da Saúde, a Universidade Harvard dos Estados Unidos, onde mais de 300 médicos dizem que ela deve ser industrializada para fins médicos. O problema é que, nas últimas décadas, a estão transformando em cocaína. Planejam acabar com as plantações, porque acreditam que, com coca zero, seria também droga zero. Não concordamos com a cocaína, mas com o uso tradicional da folha de coca. Jamais vai haver coca zero. Querem arrancar nossas raízes culturais com a folha de coca. É necessário que seja legalizada a produção de coca por família, que se produza apenas para o consumo legal.
 

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