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19/07/2004 - 20h45

Papa faltou ao respeito com o povo, diz padre sandinista

GILBERTO LOPES
da BBC, em Manágua

É uma das imagens mais fortes da época do governo sandinista: o padre Ernesto Cardenal, ajoelhado na pista do Aeroporto de Manágua, é repreendido publicamente pelo papa João Paulo 2º.

Pouco depois, em uma missa campal, ocorreu aquele que foi provavelmente o momento mais dramático nas incontáveis viagens do pontífice pelo mundo.

Em meio à guerra que era travada na Nicarágua, a multidão gritava "queremos a paz", enquanto o papa exigia "silêncio".

O padre Cardenal, poeta, escultor e ex-ministro da Cultura, sentado em um modesto escritório em Manágua, rodeado de quadros de sua comunidade da ilha de Solentiname, relembrou o episódio em entrevista à BBC.

BBC - Na sua opinião, qual foi a grande conquista da revolução?

Ernesto Cardenal - A grande conquista da revolução, e que ficou, é a da democracia. Depois de uma tirania de meio século dos Somoza, a revolução libertou a Nicarágua.

Essa democracia se mantém, ainda que agora seja uma democracia corrompida. Muito corrompida, mas é democracia. Não temos uma ditadura militar, não há presos políticos, não há um regime policial, há democracia.

Não foi o que a revolução pretendeu prioritariamente. No entanto, foi seu resultado mais importante porque o que a revolução pretendia, antes de tudo, era uma mudança social. E a mudança social tinha que ser feita com uma revolução popular e foi o que se fez. A revolução foi o povo no poder.

Pode-se dizer também que outra grande conquista foi o Exército. Neste continente, o único Exército democrático é o da Nicarágua. É o Exército da guerrilha, o Exército guerrilheiro sandinista, que passou a ser o Exército nacional.

Mas isso nada mais foi do que uma mudança de nome. Era um Exército sandinista nacional e passou a ser um Exército nacional, mas também é um Exército sandinista. Pode-se dizer algo similar sobre a polícia. O Exército e a polícia têm estado, desde a revolução e até agora, identificados com o povo.

Há, além disso, outras conquistas culturais que foram mantidas: o artesanato, o folclore e a pintura popular. E, sobretudo, uma mudança de consciência, que persiste até hoje.

BBC - Em seu livro mais recente, A revolução perdida, o senhor disse que tem que haver outra revolução na Nicarágua. Por quê?

Cardenal - Tem que haver outra revolução porque a que tivemos foi frustrada, não foi conclusiva, ficou pela metade e tem que se completar.

Pensando globalmente, o mundo inteiro precisa de uma revolução, uma revolução global, porque temos um sistema injusto, custoso, que não pode seguir mantido assim. Pelas razões da mesma lei científica da evolução, tem que haver uma mudança.

Mao dizia que a revolução é um salto da evolução, que a revolução avança por saltos. Pode-se dizer, então, a evolução e a revolução são o mesmo e tem que haver mudanças. Um mundo novo e melhor é possível.

Depois daqueles anos de enorme efervescência da revolução, a Nicarágua me parece, às vezes, um país sem alma.

BBC - O senhor tem essa impressão?

Cardenal - Sem alma, está bem dito. Um povo morto, mas os mortos ressuscitam. Por isso, penso em uma revolução, ainda que atualmente não note nenhum sintoma dela.

O importante deste país é que teve uma revolução, o acontecimento mais importante de sua história. Uma revolução que foi modelo para o mundo, que para muitos foi a melhor do mundo, que teve um grande carinho, uma solidariedade mundial como nenhuma outra.

Isso foi o que os Estados Unidos não poderiam permitir. Não porque a Nicarágua havia sido forte ou importante economicamente, ou politicamente, mas pelo exemplo moral que estava sendo sua rebelião.

Os EUA já haviam tido que permitir que houvesse uma segunda Cuba, que era a revolução da Nicarágua. Mas chegou um momento em que eles não poderiam permitir que houvesse na América Central uma segunda Nicarágua (que era El Salvador).

BBC - A primeira visita do papa à Nicarágua, em 1983, resultou em um confronto com a revolução. Que lembranças o senhor tem daquela visita?

Cardenal - Não só eu, como todo o mundo, recordo quando ele me repreendeu no aeroporto. Era porque não queria que eu, sendo sacerdote e membro do gabinete, estivesse no aeroporto.

Como o governo da Nicarágua insistiu que eu tinha que estar lá, porque era ministro, ele chegou e me repreendeu e disse que eu tinha que regularizar minha situação. Isso não tinha nenhum sentido. Minha situação estava regularizada porque os bispos da Nicarágua haviam permitido que os sacerdotes que tinham cargos no governo seguissem neles por certo tempo.

BBC - O que foi o mais importante da primeira visita do papa à Nicarágua?

Cardenal - O mais importante dessa visita foi o enfrentamento dele com o povo durante a missa campal diante de 700 mil nicaragüenses.

O plano do papa era derrubar o governo naquele momento. Em um país majoritariamente cristão, com o pontífice, diante de uma quantidade tão grande da população, atacando a revolução, o governo cairia se o povo o aplaudisse.

Pouco a pouco, começou a haver poucos aplausos e uma certa confusão entre a multidão. Depois, começaram a gritar palavras de ordem contra o papa quando viram que ele estava atacando a revolução.

Por umas duas ou três vezes, o papa teve que gritar à multidão: "silêncio". Isso inflamou mais o público, que não estava acostumado a ver seus dirigentes revolucionários gritarem por silêncio.

O povo faltou ao respeito com o papa porque gritou palavras de ordem, não quis dizer as palavras da consagração e a bênção papal. E, por último, ao cantar o hino da Frente Sandinista. Mas o papa também faltou ao respeito com o povo.

O papa cometeu esse erro por acreditar que a Nicarágua era a Polônia. Ele havia dito que a Nicarágua era sua segunda Polônia. Quando chegava à Polônia, todo o povo o aclamava, um povo majoritariamente católico com um governo comunista, que era contra a religião.

Na Nicarágua, havia um povo católico, mas também revolucionário, que, em vez de aplaudir o papa, protestou e defendeu sua revolução.

Essa foi uma prova de fogo para a revolução. Se o povo tivesse ovacionado o papa, o governo cairia naquela mesma tarde. Então, no noticiário internacional, teriam dito que o povo se revoltou contra a revolução, e não que o povo faltou ao respeito com o papa.

BBC - Que conseqüências teve esse incidente para a revolução?

Cardenal - Uma grande propaganda mundial de que havia sido um sacrilégio, uma blasfêmia, de que havia sido uma provocação. Uma missa de desagravo foi realizada no dia seguinte, na Costa Rica, pela falta de respeito, ou pela forma anticristã como o governo sandinista havia reagido. Foi mesmo o povo que fez aquilo. A revolução nunca pensou que aquele incidente iria ocorrer.

BBC - Após se apresentar como defensora dos interesses da população, por que a revolução perdeu as eleições?

Cardenal - Por duas razões: as eleições praticamente se perderam pela ingerência dos EUA, por uma guerra de oito anos, um bloqueio econômico, a hostilidade em todo sentido, a proibição do comércio da Nicarágua com os EUA --o único país com o qual a Nicarágua fazia comércio.

Tudo isso levou um setor da população a votar por uma mudança de governo, para ter uma mudança da situação, para resolver a crise econômica que a Nicarágua estava passando.

Mas isso não foi grave porque a revolução poderia perder eleições --porque a revolução era uma revolução democrática-- e portanto corria o risco de perder e depois voltar outra vez a recuperar o poder.

O grave foi que, com a derrota nas eleições, a maioria dos dirigentes se desmoralizaram e se corromperam. Foi o que se chamou "la piñata", que foi o roubo descarado pelos principais dirigentes, uma traição a seus princípios, ao povo e a eles mesmos.

BBC - Qual é a sua melhor lembrança daquele período?

Cardenal - Tudo, principalmente o momento do triunfo, que foi uma coisa realmente bela, comovedora. Para mim, o mais belo da minha vida.

Especial
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