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20/09/2004 - 22h56

Annan admite "frustração" à frente da ONU

da BBC Brasil

O secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Kofi Annan, reconheceu em uma entrevista à BBC que às vezes se sente frustrado com seu trabalho, por depender da colaboração dos estados-membros para intervir em situações de crise internacionais.

"Há situações em que é muito frustrante, porque você vê que é preciso agir com urgência e você sabe que a capacidade existe, mas os governos não estão prontos para agir", disse Annan, que falou com exclusividade à BBC.

Na mesma entrevista --que teve partes publicadas na semana passada-- Annan disse que considera "ilegal" a ofensiva militar liderada contra o Iraque pelos Estados Unidos no ano passado.

Ele também falou de sua preocupação com a situação humanitária no Sudão, pedindo a aprovação de uma resolução que permitisse à ONU enviar uma comissão de inquérito para apurar as supostas atrocidades na região de Darfur.

A resolução, aprovada no fim de semana, também prevê a possível adoção de sanções contra o Sudão caso o país não colabore no sentido de acabar com a violência na região.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

BBC O secretário de Estado americano, Colin Powell, descreveu a situação no Sudão como genocídio. O senhor concorda com ele?

Kofi Annan Eu não posso determinar isso, trata-se de uma determinação judicial, você sabe que existe (...) uma resolução que prevê que eu envie uma comissão de inquérito para investigar [os eventos no Sudão] e preparar um relatório para submeter ao Conselho [de Segurança]. Na realidade, eu acho que o secretário de Estado [Colin Powell] disse que há investigações preliminares que indicam que há genocídio e nós precisamos enviar uma equipe para lá para investigar logo. Mas é claro que nós não precisamos esperar por essa determinação para agir. Todos concordam que nós temos uma situação catastrófica na região e que crimes graves estão sendo cometidos e que nós não precisamos esperar para pôr um rótulo no que está acontecendo antes de agirmos.

BBC - Num discurso em janeiro, o senhor havia dito que há países que se recusam a chamar situações de genocídio --aparentemente referindo-se a Ruanda e Srebrenica-- como tal para evitar cumprir com as suas obrigações. Agora, os EUA descrevem o que acontece no Sudão como genocídio, e é o senhor quem hesita. Por quê?

Annan Não, nós enviamos muitas missões para lá, temos uma equipe de direitos humanos e um relator para direitos humanos, eles nos deram dois relatórios, que não descreveram a situação como genocídio e isso é extremamente importante. Eu acho que o conselho está certo em criar uma comissão de inquérito independente para ir para o Sudão e preparar um relatório com base no qual esta determinação possa ser feita. Não me entenda mal, eu já falei das atrocidades e sistemáticas violações de direitos humanos e da lei humanitária internacional, mas você precisa começar com [a adoção de] uma convenção. Uma que indique a intenção de eliminar um grupo ou uma etnia e que isso precisa ser examinado.

BBC Nos seus pensamentos, o senhor acredita que está, nesse caso, exercendo a liderança moral que gostaria de estar exercendo?

Annan Eu acho que eu falei bastante sobre isso, publicamente e nas minhas discussões com o conselho. Se você perguntar a eles, eles lhe dirão que eu tenho os pressionado muito nesta questão.

BBC O ditador soviético Josef Stalin ironizava que o papa não tem divisões militares, insinuando que, portanto, não tinha poder de fato. O senhor gostaria de ter as suas próprias divisões militares?

Annan Eu acho que nós não precisaríamos de um contingente muito grande. Seriam tropas para serem usadas em situações quando elas começam a se desenvolver, para cortá-las pela raiz, ou para evitar que elas acontecessem. Deslocar essas tropas rapidamente faria uma grande diferença. Nós estamos numa situação em que eu digo que eu sou o bombeiro e que eu sei que você precisa de uma estação de bombeiros, mas que nós vamos construir uma quando o fogo surgir. Nós começamos a procurar os Exércitos e a pedir tropas quando a crise estoura. Às vezes levamos três meses, às vezes levamos seis meses nesse processo de conseguir as tropas.

BBC O senhor fica muito frustrado no seu trabalho?

Annan Há situações em que é muito frustrante, porque você vê que é preciso agir com urgência e você sabe que a capacidade existe, mas os governos não estão prontos para agir. (...) Eu considero a situação do ponto de vista da ONU e da comunidade internacional, já os políticos tendem a ver as coisas em termos de interesses nacionais imediatos e do impacto na população dos seus países.

BBC O senhor acha que a chamada guerra contra o terrorismo desviou a atenção da comunidade internacional de outras questões importantes?

Annan [A guerra contra o terrorismo] teve um impacto na agenda internacional. Na realidade, no início deste ano, eu disse que nós deveríamos nos esforçar para reequilibrar a agenda internacional. Há cinco anos nós desenvolvemos as metas de desenvolvimento do milênio, que incluem a luta contra a pobreza, pela educação, contra o vírus HIV. Nós também estamos vendo o que as mudanças climáticas estão fazendo com o clima. Mas tudo isso foi deixado de lado porque o foco estava na guerra contra o terrorismo, no Iraque, que os outros problemas não receberam a atenção que merecem, e nós precisamos tentar trazê-los de volta ao foco.

BBC O senhor acha que o mundo é mais seguro hoje do que três anos atrás, quando todos houve os atentados a Nova York e Washington?

Annan Eu não posso dizer que o mundo é um lugar mais seguro, quando você prestar atenção no que está acontecendo à nossa volta, não apenas no Iraque, no Afeganistão, em Beslan, em Madri e em outros lugares no mundo, as pessoas vivem sob o alerta de ameaças terroristas.

BBC Qual é a melhor forma, então, de travar a chamada "Guerra contra o Terrorismo?"

Annan Eu acho que você deve adotar várias táticas. A força poderá ser necessária em certas situações, mas eu não acho que a solução militar seja suficiente. Eu acho que deve haver cooperação entre os países, que devem compartilhar informações, evitar que grupos responsáveis por atentados criem contas bancárias, negar refúgio aos membros desses grupos, e não lhes dar oportunidades de atacar. Além disso, é claro, você precisa lidar com algumas das origens das situações de desespero em que algumas pessoas vivem, o que facilita o trabalho de recrutamento dos terroristas. Eu não estou insinuando que os pobres sejam sempre terroristas, mas determinadas condições criam situações em que as pessoas são estimuladas a entrar nesses grupos.

BBC As causas do terrorismo são sociais, então?

Annan Quando as pessoas têm um sentimento de profunda injustiça. Quando as pessoas vivem em condições econômicas e sociais desesperadoras, elas se sentem presas, sem alternativa, e há um profundo sentimento de desespero que às vezes as leva a fazerem coisas que não fariam normalmente. E, é claro, há os tipos ideológicos que o fazem pela ideologia e pelas suas próprias crenças, por mais estranhas que elas nos pareçam.

BBC Sobre o Iraque, o senhor acredita que haverá condições de segurança para que se realizem as eleições previstas para janeiro no país?

Annan Nós vamos dar conselhos e assessoria a eles (os iraquianos), eles vão comandar as eleições, não nós. Nós vamos estar dando conselhos e assessoria, e eu espero que eles sejam capazes de fazer tudo o que têm que fazer, mas, obviamente, a segurança será um fator. O julgamento terá de ser feito pelo governo iraquiano que vai conduzir as eleições. Obviamente nós vamos poder fazer a nossa própria avaliação independente.

BBC Como é sua relação com o Presidente americano, George W. Bush?

Annan Nós nos damos bem, já tivemos nossas diferenças, o que é de se esperar, mas fomos capazes de discuti-las de forma franca com ele e com a administração dele. Nós nem sempre concordamos, porque eles defendem a política deles e eu preciso ser guiado pelas decisões do Conselho de Segurança.

BBC O seu antecessor, Boutros Boutros Gali, também era muito diplomático ao falar dos EUA quando estava no cargo. Mas quando saiu da ONU fez várias críticas à forma como os EUA tratavam a ONU. Pode-se esperar que o senhor faça o mesmo?

Annan Pode haver algumas áreas, embora eu já reconheça que nos temos dificuldades hoje, em que eu serei bem direto em relação a onde nos tivemos dificuldades. Você também tem que entender que eu tenho uma responsabilidade de estimular estados-membros a trabalharem juntos. Os estados unidos são um membro essencial da organização e em circunstancias normais deveria ter um papel natural de liderança.

BBC Como a relação próxima com os Estados Unidos afeta a credibilidade da ONU?

Annan A identidade da ONU fica difusa numa situação como a do Afeganistão, em que você tem forças multinacionais. Nós tivemos a mesma situação no Iraque. Há pessoas que defendem que a ONU foi atacada em Bagdá --ataque que matou o então enviado especial da ONU ao país, Sérgio Vieira de Mello-- porque eles acharam que nos estávamos ajudando os Estados Unidos e tínhamos os mesmos objetivos que os americanos.

BBC O senhor se ressente de que os EUA tenham se tornando uma superpotência unilateral e impossível de ser contida?

Annan Eu acho que no último ano, nós todos passamos por lições dolorosas. Estou falando desde a guerra. Acho que no final todos concluíram que é melhor trabalhar juntos e por meio da ONU. Eu acho, ou espero, que nós não vejamos uma outra operação como o Iraque por um bom tempo. Ou seja, sem a aprovação da ONU e sem uma aprovação mais ampla da comunidade internacional.

BBC Então, o senhor não acha que havia uma autoridade legal para a guerra (no Iraque)?

Annan Eu fui claro, declarei claramente que aquilo não estava em conformidade com o estatuto da ONU.

BBC Era ilegal?

Annan Sim, se você quiser.

BBC Era ilegal?

Annan Sim, eu indiquei que não estava em conformidade com o estatuto da ONU. Do nosso ponto de vista, do ponto de vista do estatuto, era ilegal.

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