Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
14/10/2004 - 19h34

América Latina está pior do que há 50 anos, diz filha de Guevara

CLAUDIA SILVA JACOBS
da BBC Brasil

A pediatra Aleida Guevara, 43, especializada no tratamento de alergia, não poupa críticas ao que descreve como um sistema neoliberal que deixou a América Latina "pior do que há 50 anos".

Em entrevista à BBC Brasil, a filha mais nova do líder revolucionário Ernesto Che Guevara diz ainda que Cuba vai resistir ao bloqueio (Aleida rejeita o uso da palavra embargo) imposto pelos Estados Unidos e que a maior potência mundial está caminhando para seu fim.

Aleida Guevara está em Londres para participar do Fórum Social Europeu, que começa nesta sexta-feira.

A filha de Guevara defende o projeto político do presidente venezuelano, Hugo Chávez, e diz que ficou decepcionada com a pobreza que viu no Brasil.

"Esperava pelo menos não encontrar nenhuma criança passando fome", afirmou. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

BBC Brasil - Em artigo publicado na última quarta-feira pelo jornal britânico "The Guardian", a senhora faz uma crítica direta ao presidente americano, George W.Bush. Por quê?

Aleida Guevara - Disse, com esse artigo, que é muito perigoso que a potência mais forte do planeta no momento tenha um presidente que diga essas coisas publicamente, que nos leve a uma situação de guerra tremenda e de ansiedade, porque não sabemos o que pode passar, o que vai acontecer nos próximos dias.

BBC Brasil - A senhora também fala em buscar um mundo mais justo e igualitário, no mesmo discurso usado durante os anos 60 ou 70. A senhora não crê que este tipo de mensagem pode parecer ingênua, ou a senhora acredita que é possível?

Aleida - Olha, não sei até onde pode ser ingênuo, mas digo que isso é necessário. Porque não podemos seguir vivendo do jeito que estamos fazendo até o momento.

Cada dia que passa, há um grupo de ricos mais ricos, mas que é pequeníssimo, e uma quantidade tremenda de homens e mulheres com suas necessidades primárias sem resolver. Isso me parece que está levando a humanidade a um momento de crise muito violento, e acho que deveríamos começar a tratar de resolver esse problema.

BBC Brasil - Como será a sua participação no Fórum Social Europeu?

Aleida Guevara - Vou falar várias coisas, da resistência dos povos latino-americanos, em especial Cuba, do enfrentamento com o imperialismo ianque, da política neoliberal e toda a situação atual que estamos vivendo. E, por outro lado, vou recordar a figura de Che Guevara.

BBC Brasil - O que a senhora acredita que mudou na América Latina nos últimos 50 anos?

Aleida Guevara - Mudou para pior a situação dos que vivem em condições subumanas. Os 20 anos de política neoliberal levaram nosso continente a extremos inimagináveis.

Imagina pensar, por exemplo, na Argentina, um grande produtor de grãos, que chegou a ser o 10º produtor de grãos mundial, e hoje tem crianças no norte do país morrendo de fome. São imagens que você não poderia imaginar que aconteceriam um dia. Há muitas coisas que estão piorando.

BBC Brasil - Por que a senhora acredita que isto está acontecendo?

Aleida Guevara - Os povos têm sido mais do que saqueados e, por isso, a situação econômica vem piorando cada vez mais. O que me leva a refletir que homens e mulheres têm que pensar o que vão fazer no futuro: ou morrer de fome ou morrer tentando mudar essa realidade.

BBC Brasil - Qual a sua avaliação do presidente Hugo Chávez?

Aleida Guevara - Penso que são os povos latino-americanos que vão decidir o que querem fazer e fazê-lo. E neste caso, o povo cubano apóia muitíssimo o processo revolucionário na Venezuela. Todo o processo bolivariano.

Acreditamos que estão fazendo algo útil pelo povo. Povo que possui muitos recursos e que nunca tinha desfrutado disso e, pela primeira vez, tem dinheiro para a educação, saúde, assistência social. Portanto, parece que é um projeto muito interessante e, por isso, o apoiamos durante todo tempo.

BBC Brasil- E as críticas ao estilo de administração do presidente Hugo Chávez?

Aleida Guevara - Já passamos por isso. Cuba, em 1959, tinha uma taxa de mortalidade de 60 bebês por mil nascidos vivos e hoje tem 2 por mil nascidos vivos. Havia 33% de analfabetos e hoje empresta médicos inclusive à Europa. As pessoas reconhecem que há diferenças tremendas, mas, mesmo assim, Cuba continua sendo criticada em muitas ocasiões.

A cada oportunidade que surge, arrumam algo contra Cuba, e o mesmo está acontecendo com o presidente Chávez na atualidade, porque ele está invertendo os recursos de seu povo em benefício de sua gente. E não indo para os bancos internacionais aumentar as dívidas do país em alguns quantos. Sempre somos castigados por tentar defender a nossa gente, por tentar fazer algo melhor para o povo.

BBC Brasil - A senhora se diz decepcionada com o que encontrou no Brasil. O que a senhora esperava encontrar?

Aleida Guevara - Pelo menos nenhuma criança com fome. Essa é a verdade. Um país com tanta riqueza para dar, para compartilhar, é injusto que tenham pessoas que não possuem sequer onde dormir, onde criar seu filho com um pouco de dignidade. Essas coisas não podem ser possíveis. Não se pode aceitar.

Eu não sei até que ponto as pessoas podem considerar isso romântico, superficial, mas o que sinto como pediatra é que nenhuma criança deveria passar necessidades em nenhum momento. E que nós teríamos que ter a possibilidade de dar uma vida melhor para as crianças, para que sejam adultos melhores.

BBC Brasil - Que impressão a senhora possui do governo Lula?

Aleida Guevara - É muito difícil a situação do presidente Lula neste momento. Apesar de chegar ao poder através de um sistema democrático, como a maior parte da gente gosta e conhece, ele não tem a maioria absoluta no Senado, não tem poder absoluto no governo. Então, é muito difícil para o presidente emitir critérios se não tem quem dê respaldo, quem leve a cabo seus projetos. Não me parece fácil a situação para o presidente Lula.

BBC Brasil - A senhora viu o filme "Diários de Motocicleta"?

Aleida Guevara - É a quinta vez que vejo. Gostei muito, menos o ataque de asma no barco, que eu achei um pouco exagerado. Todo o resto me pareceu magnifico.

BBC Brasil- Foi criada na Bolívia a rota turística de Che, baseada na viagem de seu pai pela América Latina. O que a senhora acha disso?

Aleida Guevara - Na verdade, penso que sempre que façam algo com respeito, e sempre que se faça algo para que as pessoas aprendam mais deste homem é positivo. Mas o que sempre me causa temor é que alguns aproveitem a situação para lucrar. Isso sempre é um temor em qualquer parte do mundo quando se trata de meu pai e da utilização de sua imagem. Mas são coisas que precisamos esperar para ver.

BBC Brasil - A senhora tinha seis anos quando seu pai morreu. Há algo específico que a senhora recorda dele?

Aleida Guevara - Algumas recordações, eu guardo comigo. Algumas são formadas por uma terceira pessoa, principalmente por minha mãe, que o amou extraordinariamente, e transmitiu para os filhos esse amor. São coisas de um papai com seus filhos, como sentar na sua perna para ver a primeira luta de boxe que vi na minha vida, ou o primeiro livro que ele me deu, e coisas assim, que vem a minha memória.

BBC Brasil - A senhora acredita que a figura de Che Guevara ainda está presente na América Latina?

Aleida Guevara - Está mais do que presente na América Latina, na Europa, também na Ásia e na África. Essa presença tem se multiplicado. Ele foi mesmo convertido a uma bandeira de combate contra qualquer injustiça em qualquer parte do mundo.

Uma das coisas que meu pai disse há muitos anos é que havia de criar dois, três, muitos Vietnãs. E olha, que coincidência, o mesmo governo dos Estados Unidos está cumprindo o que meu pai dizia, está criando tantos Vietnãs nesse momento que possivelmente será o começo do seu fim.

BBC Brasil - Depois de 40 anos de embargo a Cuba, a impressão é de que a situação não vai mudar. Até quando os cubanos conseguirão resistir?

Aleida Guevara - Olha, vamos trocar essa palavra porque estamos falando em castelhano. Em inglês, eu não sei o que significa embargo, mas, em castelhano, significa que alguém tira algo de você. Nós somos bloqueados porque os Estados Unidos entendem que não devemos negociar com nenhum outro povo do mundo livremente. Isso se chama bloqueio, e não embargo.

Nós resistimos há mais de 40 anos a esse bloqueio e vamos continuar resistindo. O que acontece é que estamos lutando para que o mundo se dê conta de que isso também é um tipo de genocídio, uma manifestação de terrorismo de Estado, porque tratar de obrigar um povo a passar necessidade não pode ser justificado em nenhuma parte de mundo. Por isso, Cuba luta contra esse bloqueio. E vamos continuar resistindo.

BBC Brasil - O que políticos como o presidente Lula e Hugo Chávez poderiam fazer para ajudar Cuba?

Aleida Guevara - O mais importante para Cuba é a solidariedade, o respeito a seu povo. Nesse sentido, é a ajuda mais importante. Que se lembrem que nós somos irmãos e que saibam que podem contar conosco quando necessário.

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Aleida Guevara
  •  

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página