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21/12/2005 - 08h10

Análise: Julgamento de Saddam pode virar show interminável

GERRY SIMPSON
da BBC

O julgamento do ex-presidente do Iraque Saddam Hussein, que está sendo retomado nesta quarta-feira, tem uma série de diferenças em relação a outros grandes julgamentos do passado e corre o risco de se tornar um show interminável, caso o tribunal não zele para evitar isso.

O processo será lembrado ou como o maior julgamento da história recente ou como um espetáculo que desacreditou as novas autoridades iraquianas e a invasão e ocupação pelos Estados Unidos, bem como por ter posto em risco as perspectivas para a paz e o Estado de direito no Iraque.

Muita coisa está em jogo

É possível que julgamentos de crimes de guerra tenham repercussões importantes. Os Tribunais de Nuremberg, há 60 anos, lançaram as fundações para a nova sociedade alemã, puseram a perseguição aos judeus e a outras minorias no registro histórico e puniram os que cometeram alguns dos piores crimes da humanidade.

E, com todas as suas falhas, os julgamentos pelas Nações Unidas dos criminosos de guerra dos Bálcãs e de Ruanda em Haia e Arusha, atualmente, forneceram pelo menos alguma satisfação para as vítimas e desenvolveram de forma profunda as leis da humanidade.

Justiça doméstica

No caso do processo contra Saddam, existe uma série de problemas em potencial.

Primeiro, diferentemente dos julgamentos mencionados acima, o do ex-presidente iraquiano e seus associados não está sendo conduzido por um tribunal internacional de crimes de guerra.

Em Nuremberg, nas palavras do promotor-chefe, Robert Jackson, "quatro grandes países afogueados pela vitória e atormentados pela injustiça paralisam a mão da vingança e voluntariamente submetem seu inimigo ao julgamento da lei".

Muitos outros países assinaram o estatuto usado para processar os nazistas.

Nuremberg era um esforço internacional. Nos Bálcãs, o Conselho de Segurança se uniu para estabelecer um tribunal internacional com juízes internacionais usando a legislação internacional.

No caso de Saddam, o julgamento está sendo feito dentro da legislação iraquiana, com juízes iraquianos. Há custos em potencial para fazer isso dessa forma.

A imparcialidade dos juízes (muitos deles vítimas do velho regime) vai ser posta em dúvida, o nível de capacitação disponível fica reduzido de alguma forma e a força legitimadora da lei internacional estará ausente.

Mas isso não significa que tribunais locais não possam fazer um trabalho decente. Em 1961, Adolf Eichmann foi julgado em Jerusalém por juízes israelenses cuja atuação foi vista como digna e objetiva.

Violência infecciosa
No entanto, as circunstâncias no Iraque em 2005 são muito diferentes daquelas de Jerusalém em 1961, e aqui chegamos ao segundo grande problema.

É possível fazer justiça no contexto de uma guerra civil em andamento e de uma ocupação estrangeira? Julgamentos de crimes de guerra normalmente ocorrem no fim de um período de trauma quando sociedades inteiras estão prontas a enfrentar um período de avaliação na ausência de violência e de retribuição extrajudicial.

O Iraque não está nessa posição

É um país que está sofrendo grande conflito e isso começou a afetar os próprios procedimentos. O assassinato de dois advogados de defesa e a penetrante sensação de caos dentro do tribunal são um mau presságio para o sucesso do julgamento.

O próprio Saddam, é claro, está contribuindo para esse caos. Ele é o que faz esse julgamento especial e vai argumentar que, na qualidade de ex-presidente do Iraque, sequer deveria estar em julgamento.

No entanto, não há nada de novo em processar um ex-chefe de Estado. Cada um dos processos que mencionei incluiu o julgamento de um ex-chefe de Estado (Kambanda em Ruanda, Milosevic nos Bálcãs e Doentiz em Nuremberg).

E, na verdade, houve planos não concretizados de processar Napoleão e o imperador alemão Wilhelm 2º em outros tempos. Eu duvido, portanto, que as alegações de imunidade por Saddam tenham muito peso na parte técnica do julgamento.

No entanto, a aparente deferência mostrada a ele pelo juiz-chefe poderá ter que dar lugar a uma postura mais dura para que esse julgamento não se estenda de forma interminável.

Saddam pode querer isso, é claro

Essa tem sido a tática de Slobodan Milosevic, e se Saddam planeja converter o processo em um show, ele vai querer estender o processo tanto quanto possível.

Papel dos EUA

Saddam já se referiu ao potencial dramático do julgamento, quando disse em sua apresentação inicial em julho de 2005. "Eu não quero fazer com que vocês fiquem desconfortáveis, mas vocês sabem que isso é tudo um teatro montado por Bush".

O ex-ditador iraquiano parece bem equipado para fazer o papel principal nessa peça, e o tribunal terá que trabalhar duro para evitar isso.

Mas os comentários de Saddam atingem em cheio outra objeção sobre a legitimidade do julgamento. E se for mesmo um show, não conduzido por Saddam, mas por Bush?

Com certeza os americanos tiveram um grande papel organizando o julgamento e garantindo a segurança.

Os Estados Unidos influenciaram o formato dos procedimentos, e o estatuto foi redigido em cooperação com a agora extinta Autoridade Provisória da Coalizão, liderada pelos americanos.

Independentemente de influências americanas específicas, porém, o julgamento como um todo já está prejudicado na visão de muitos devido à ilegalidade da invasão inicial.

E Saddam deve utilizar este argumento em algum momento do julgamento, junto com outro trunfo poderoso: o histórico de colaboração entre o Ocidente e seu regime durante o período que está sendo investigado.

De fato, este medo talvez sirva para explicar por que as acusações iniciais são tão restritas.

As acusações feitas até agora contra Saddam estão relacionadas a um único incidente na cidade de Dujail, em 1981, quando seguranças de Saddam teriam realizado uma série de assassinatos após uma tentativa fracassada de matar o presidente na cidade.

Em outras palavras, o indiciamento ainda precisa abranger os ataques com gás contra os curdos em Halabja (assim como outras atrocidades ligadas à campanha de Anfal), o assassinato de importantes clérigos xiitas, a tortura praticada pelos serviços de segurança de Saddam contra detentos de Abu Ghraib ou as violações dos direitos humanos cometidas pelas tropas iraquianas no Kuwait durante a sua breve ocupação em 1990-1991.

Ao restringir as acusações, a promotoria talvez esteja tentando evitar que o julgamento seja politizado. Saddam tentará fazer justamente o contrário.

Como Austen Chamberlain, então ministro da Economia britânico, disse sobre o plano de julgar o Kaiser alemão em 1919 "a defesa dele pode ser o nosso julgamento".

Gerry Simpson é professor de direito internacional da London School of Economics
 

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