Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
19/04/2006 - 16h11

Portugal relembra 'primeiro pogrom' da era moderna

JAIR RATTNER
da BBC Brasil, em Lisboa

Portugal relembra nesta quarta-feira um acontecimento que passou à margem da maioria dos livros de história.

No Rossio, a principal praça de Lisboa, serão acesas 4.000 velas para manter a memória do massacre de 19 de abril de 1506, no qual foram mortos entre 2.000 e 4.000 judeus, no primeiro pogrom da era moderna.

A convocatória foi feita pela comunidade judaica de Lisboa, por intelectuais e corre a Internet. O local escolhido é a frente da Igreja de São Domingos, onde ocorreu a matança.

Era uma época de seca, fome e peste na cidade de Lisboa. Na Igreja do Convento de São Domingos – localizada no Rossio – uma imagem de Cristo teria ficado iluminada por uma candeia ou por uma luz solar, o que foi considerado um milagre.

Cristão novo

Nos dias seguintes, foram organizadas procissões para saudar o milagre. O massacre começou no domingo de Pascoela (o que vem a seguir à Páscoa), no dia 19 de abril de 1506.

Um cristão novo – judeu convertido ao cristianismo – que tinha ido à igreja de São Domingos colocou em dúvida o milagre. Teria dito que era apenas uma luz ou perguntou por que Deus não fazia chover em vez de iluminar a sua imagem.

Foi arrastado pelos cabelos para o adro da igreja e assassinado brutalmente no local, sendo depois queimado. Dois frades dominicanos saíram do mosteiro, com crucifixo na mão, aos gritos de “heresia, heresia”, e aí começou a matança.

Os relatos da época falam de 2.000 a 4.000 mortos. Damião de Góis, cronista oficial de D. Manuel, o rei de Portugal, escreveu: “Começaram a matar todos os cristãos novos que achavam pelas ruas, e os corpos mortos, e os meio vivos lançavam e queimavam em fogueiras que tinham feitas na Ribeira e no Rossio”. Damião de Góis afirma que só nesse primeiro dia morreram 500 pessoas.

Pelas ruas

Nos dias seguintes, mais de mil pessoas saíram pelas ruas para continuar a matança.

O cronista do reino continua: “E por já nas ruas não acharem cristãos novos, foram cometer com vaivéns e escadas as casas em que viviam, ou onde sabiam que estavam, e tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, e filhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes. Nas quais cruezas não se esqueceram de meter a saque as casas, e roubar todo o ouro, prata, e enxovais que nelas acharam”.

Outro relato, de um anônimo alemão que viu os acontecimentos, conta: “Eles fizeram alguns prisioneiros e levaram-nos para a praça de São Domingos. Estava feita uma fogueira na qual se lançavam os prisioneiros vivos. Os jovens rapazes apanhavam os mortos nas casas e nas ruas, amarravam-lhes uma corda ao pescoço, aos braços ou aos pés, para os arrastarem até a praça de São Domingos, para o fogo”.

Yosef Há-Cohen, no livro El Valle del Llanto (O Vale do Pranto), conta: “Caíram sobre os conversos de repente, como ursos e como lobos do deserto e a uns quatro mil deles passaram a golpe de espada e colocaram a mão nos despojos. Violaram as suas meninas e donzelas e as suas mulheres. Pelas janelas atiravam as mulheres em cima das suas lanças. A mãe era esmagada sobre os seus filhos no dia da cólera divina”.

Segregação

Foi o primeiro pogrom da história moderna. Segundo a historiadora portuguesa Ana Isabel Buescu, “é um dos episódios mais funestos da história do povo judeu e da história portuguesa". "Abalou a sociedade portuguesa na altura. Ao contrário da Idade Média, em que havia uma convivência entre as três religiões, ainda que com segregação, o Renascimento modificou essa situação”, explica.

Buescu afirma que, entre os fatores que abalaram o frágil equilíbrio entre as três religiões está o fato de dezenas de milhares de judeus terem saído da Espanha após a expulsão ordenada pelos reis católicos, em 1492.

Ela indica que o rei D. Manuel teve uma atitude ambígua: condenou os ataques, mas, ao mesmo tempo, foi quem obrigou à conversão forçada dos judeus. Em 1496, para casar com a filha dos reis da Espanha, determinou que todos os judeus que estivessem no reino teriam de ser convertidos e que quem quisesse sair não poderia levar as suas posses e os filhos.

Esther Mucznik, vice-presidente da Centro Israelita de Lisboa, lembra que não foi a primeira perseguição aos judeus. “Em 1449 houve uma perseguição, mas não atingiu de maneira nenhuma a ferocidade e o número de vítimas do de 1506.”

Ela conta que o rei chegou a castigar a cidade. Condenou à morte os dois frades que incitaram ao massacre e retirou de Lisboa o título de “Nobre e Leal Cidade”, que constava do brazão. Só que o título foi restituído oito anos depois.

Sobre os motivos que levaram a que o episódio fosse praticamente apagado dos livros de história, Esther aponta a responsabilidade à Inquisição, que durou quase 300 anos em Portugal.

“Apesar de a Inquisição ter terminado na década de 1820, não havia liberdade religiosa. A comunidade judaica só foi legalizada depois da revolução republicana, em 1912. Durante o Estado Novo, foi tolerada, mas não aceita. Só houve liberdade religiosa depois do 25 de abril de 1974. Muito lentamente começa a se trazer à tona a memória.”
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página