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05/06/2006 - 18h35

Mortes em Haditha são golpe para nova doutrina dos EUA

PAUL REYNOLDS
da BBC Brasil

O suposto massacre de 24 civis por fuzileiros dos Estados Unidos em Haditha, em novembro passado, foi um grave revés aos esforços dos militares americanos de desenvolver uma doutrina de contrainsurreição no Iraque.

Mas ainda não está claro se Haditha vai se tornar um símbolo do fracasso da campanha, a exemplo do que o massacre de My Lai se tornou para a guerra do Vietnã.

Provavelmente não é por acaso que os fuzileiros estavam envolvidos. Eles são os soldados mais agressivos das forças americanas.

Seu canto de guerra proclama suas proezas "dos salões de Montezuma às praias de Tripoli". Eles foram escolhidos para liderar o ataque a Falluja em 2004. Estão na linha de frente das operações mais difíceis no Iraque, no reduto sunita na província de Anbar.

Antes de Falluja, de acordo com a revista americana Newsweek, os homens da Companhia Kilo, que atuou em Haditha, realizou uma corrida de "bigas". Eles usaram aminais locais, vestiram togas, tocaram música heavy metal e fizeram uma "bola e corrente cravada de balas".

Um comandante da companhia gritou uma frase do filme Gladiador em que os romanos declararam antes da batalha contra os bárbaros: "O que vocês fizerem aqui ecoará na eternidade."

Preparo psicológico

Não há nada de novo sobre combatentes se preparando psicologicamente para a guerra.

A questão é se tais atitudes de tornaram uma atitude mental dos fuzileiros combatendo uma guerra antiguerrilha menos intensiva e cada vez mais frustrante. Alguns dos fuzileiros estavam em sua terceira guerra em três anos.

A esposa de um sargento que preferiu se manter anônimo disse que havia um "colapso total" na disciplina, com "drogas, bebidas alcoólicas, cerimônias de iniciação, tudo o que se imaginar".

Um soldado americano preso por se recusar a voltar para o Iraque disse que os iraquianos eram chamados por apelidos depreciativos, assim como os vietnamitas.

Tal descontrole pode explicar uma ação de uma unidade específica, mas não coloca em contexto adequadamente o que parece ter sido falta de uma filosofia apropriada de contrainsurreição entre o Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos.

Houve um vácuo em que tais incidentes tinham mais probabilidade de acontecer.

O atual "reparo" pós-Haditha, um curso de "valores de combatentes" de duas a quatro horas de duração, dificilmente é um substituto para tal filosofia.

Realmente, não havia uma doutrina de contrainsurreição entre os militares americanos em geral quando a invasão do Iraque foi lançada em meados de 2003.

Não havia expectativa de que seria necessário haver. Havia esperança de uma guerra rápida e uma paz rápida.

Desenvolvimento de doutrina

Só recentemente os comandantes dos Estados Unidos começaram a lidar com o problema, embora, ao longo do caminho, alguns deles desenvolveram seus próprios conceitos de como conquistar corações e mentes.

Um dos principais mentores é o general David Petraeus, ex-comandante da 101ª Divisão aerotransportada dos Estados Unidos, que participou da invasão. Ele voltou para o Iraque para ajudar a treinar forças de segurança iraquianas.

Em um artigo em Military Review em janeiro de 2006, Petraeus admitiu: "As insurreições no Iraque e Afeganistão não são, na verdade, as guerras para as quais nós estávamos melhor preparados em 2001; mas elas são as guerras que estamos lutando e são claramente o timpo de guerra que precisamos dominar."

Assim, contrainsurreição é algo novo. Petraeus observa que não se deve tentar fazer demais sozinho, que o sucesso em uma contrainsurreição exige mais do que apenas operações militares.

A atual liderança do Exército dos Estados Unidos está ciente de tal doutrina. O General Peter Chiarelli, encarregado das operações do dia a dia no Iraque, disse ao Los Angeles Times em Bagdá no mês passado: "Nós temos que entender que a forma como tratamos os iraquianos tem impacto direto no número de insurgentes que estamos combatendo. Para cada um que eu mato, eu crio quase dez outros."

O documento-chave

Talvez as idéias mais influentes tenham vindo de um livro publicado originalmente em 2002 e que teve o título Learning to Eat Soup with a Knife (Aprendendo a Tomar Sopa com uma Faca, em português), escrito pelo coronel americano John Nagl, seguindo uma citação de Lawrence da Arábia.

O comandante americano no Iraque, General George Casey, deu uma cópia do livro para o secretário da Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld. Não se sabe se Rumsfeld leu.

A obra estuda a bem sucedida campanha britânica para acabar com uma insurreição comunista na Malásia, em 1948, e compara essa experiência ao fracasso no Vietnã.

Nagl argumentou que "o Exército britânico era uma instituição de aprendizado e o Exército dos Estados Unidos não era".

A diferença, ele sugeriu, é que os britânicos, ao contrário dos americanos, empregaram uma força muito menor como parte de sua estratégia.

Visão britânica

As idéias de Nagl foram ampliadas em um outro artigo em Military Review em novembro de 2005 por um oficial britânico que serviu com os americanos no Iraque, General Nigel Aylwin-Foster.

Ele irritou alguns americanos ao dizer que o Exército dos Estados Unidos desenvolveu ao longo do tempo uma visão de guerra convencional, de um estilo particularmente rápido e violento, que não é adequada para o tipo de operação que encontrou no Iraque assim que a guerra convencional deioxu de ser o foco primário.

Assim, pode se ver que, com a emergência de uma doutrina contrainsurreição, em que o impacto de operações militares sobre populações civis recebe tanto destaque, o que ocorreu em Haditha se tornou um golpe considerável.

Pode-se argumentar de um lado que nada que os Estados Unidos podem fazer tornará a ocupação aceitável. E, de outro, todas as guerras, das de alta a baixa intensidade, produzem seus próprios massacres, que o Iraque não é diferente e os militares americanos não são piores.

Os franceses na Argélia, os russos na Chechênia, não produziram exemplos de guerra com luvas de pelica e o Exército britânico viveu momentos particularmente difíceis na Irlanda do Norte em 1972.

Mesmo na Malásia, em operação tão admirada por Nagl, houve um massacre em 1948 em Batang Kali. Foram mortos a tiros 24 civis, o mesmo número que em Haditha.
 

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