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22/08/2006 - 13h22

Acusação de genocídio complica julgamento de Saddam

GERRY SIMPSON
da BBC Brasil

Saddam Hussein começou a ser julgado nesta segunda-feira por sua participação no assassinato em massa de curdos durante a notória campanha batizada de Anfal, nos anos 80.

A decisão de acusar Saddam Hussein de genocídio, tomada em abril, pode ter o efeito de dar a seu julgamento maior legitimidade aos olhos de muitos iraquianos.

Ao mesmo tempo, é provável que torne o processo judicial muito mais complexo e prolongado, ameaçando assim essa mesma legitimidade.

Há uma ironia adicional nisso. No início deste ano, muitos especialistas, inclusive eu, estavam pedindo para Saddam um julgamento internacional na mesma linha do julgamento de Slobodan Milosevic.

Após a morte do ex-ditador sérvio, em março, aquele julgamento foi criticado por não conseguir fazer justiça de maneira rápida e eficaz.

Comentaristas fizeram fila para acusar o tribunal de complicar muito o julgamento na tentativa de condenar Milosevic por genocídio.

Um mês depois, o anúncio de que Saddam Hussein também seria acusado de genocídio foi recebido em meio a essas críticas, ainda fortes.

Tempos extraordinários

Para tentar entender a importância disso tudo para o julgamento em Bagdá e para a justiça internacional em geral, é importante definir o significado de "genocídio".

Quando Ralph Lemkin, um conselheiro polonês dos tribunais de guerra de Nuremberg, cunhou o termo genocídio, ele nunca poderia imaginar que 60 anos depois um ditador europeu morreria em uma cela em Haia quando seu julgamento por genocídio chegava ao fim. Isso enquanto, ao mesmo tempo, acusações de genocídio eram anunciadas no julgamento de um líder árabe derrotado na própria capital desse líder.

Estes são tempos extraordinários na vida de um conceito legal elaborado pela primeira vez na Convenção da ONU sobre Genocídio, de 1948, e raramente aplicado no tribunal desde então.

Em ambos os julgamentos, os réus enfrentam a Justiça, mas eu diria que o crime de genocídio em si também está em julgamento.

Condenações por genocídio podem ser obtidas sem colocar em dúvida todo o processo de julgamento?

O genocídio é considerado o crime supremo pelo direito internacional. E isso não causa surpresa.

A destruição total ou parcial de comunidades humanas é sem dúvida um ato de maldade singular.

Há, no entanto, um paradoxo. O genocídio - quase por definição uma atrocidade em larga escala, geralmente pública e visível - é muito difícil de ser comprovado como um crime de responsabilidade individual.

Definição legal

Isso fica claro ao se perceber que apenas uma pequena parcela de acusados por genocídios foram condenados pelo crime desde 1948.

Mesmo nos casos em que não é tão difícil provar o genocídio, há certa relutância em empregar o termo.

Adolf Eichmann foi condenado por sua participação no Holocausto, mas não houve menção à palavra "genocídio" na lista de acusações contra ele.

Uma explicação para tudo isso é que a definição popular de genocídio é bem mais ampla que a definição legal.

No Direito, genocídio é um tipo de ofensa muito específica envolvendo três elementos distintos.

Para provar que alguém como Saddam Hussein cometeu genocídio é preciso demonstrar que:

1) ele tinha a intenção de destruir total ou parcialmente 2) determinado grupo racial, religioso, étnico ou nacional 3) por meio de uma ou mais séries de atos como, por exemplo, matanças ou deportações ou remoções forçadas de crianças das casas de suas famílias.

É muito difícil demonstrar intenção no Direito em geral.

E é muito mais difícil quando há ligações hierárquicas entre o acusado e aqueles que executaram as mortes e quando os líderes têm o cuidado de não deixar documentos que os relacionem aos atos em questões.

Estratégia de acusação

Pode restar pouca dúvida de que Saddam Hussein ordenou a destruição de algumas aldeias curdas, mas será que isso comprova a intenção de destruir o povo curdo?

Uma possível pista sobre a estratégia da acusação pode ser encontrada no caso Krstic, no Tribunal Criminal Internacional para a Antiga Iugoslávia.

O general Radislav Krstic, subordinado imediato do atualmente fugitivo líder militar Ratko Mladic, comandava a Unidade de Drina, tropa servo-bósnia dos arredores de Srebrenica, quando os soldados participaram do massacre de oito mil homens e meninos muçulmanos em 1995.

Em 2001, Krstic foi condenado a 46 anos de prisão por genocídio. Depois de um recurso, a pena foi reduzida para 35 anos.

O tribunal decidiu que Krstic tinha a intenção de cometer genocídio contra os muçulmanos bósnios ao tentar destruir uma parte substancial daquela população, ou seja, os muçulmanos bósnios de Srebrenica.

Má notícia para Saddam

Esse caso pode ter grande importância para o julgamento relacionado à campanha Anfal porque sugere que o crime de genocídio engloba a destruição de comunidades relativamente localizadas dentro de um grupo maior.

O tribunal ainda disse o seguinte: "Quando não há evidência direta da intenção de genocídio, essa intenção ainda pode ser deduzida por meio das circunstâncias do crime".

Esse precedente pode ser uma má notícia para Saddam.

Mas mesmo que Saddam seja condenado pelo crime de genocídio, se isso ocorrer no contexto de um julgamento prolongado e enrolado, que efeito terá na legitimidade do processo?

Isso pode terminar de duas maneiras. Os problemas em provar o crime de genocídio podem atrasar tanto o final do julgamento que cada vez mais os iraquianos acabarão se desligando do caso.

Outra possibilidade é que a acusação de genocídio acabe reanimando o processo de julgamento e justificando os pedidos de justiça feitos por um grande número de vítimas de Saddam.

De qualquer maneira, o crime de genocídio está em julgamento em Bagdá.
 

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