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28/10/2009 - 09h39

Sociedade fraturada

IVAN LESSA
colunista da BBC Brasil

Eu culpo os operários.

Há quase 40 dias andando para cima e para baixo nos andaimes que cobrem a casa em que vivemos eu e mais quatro donos, ou inquilinos, pintando nela e seus exteriores não só o sete, como seus múltiplos e alguns números primos, escutando rádio alto, vindo apenas nos dias que lhes interessam, devassando a intimidade de meu lar e, pior que tudo, dando palpitações na gata.

Eu culpo os operários. Pelo fato de eu quase ter fraturado a rótula de meu joelho direito.

Eu distribuo culpas.

Culpo os operários, a conjuntura, a recessão, as sucessivas greves nos correios, e as que vem aí na British Airways, culpo as indecisões de um atual primeiro-ministro, culpo a possível elevação de um ex-primeiro-ministro, o marotíssimo Tony Blair, para a presidência da União Europeia, as altas bonificações pagas aos mesmos banqueiros da City que há um ano mergulharam o país em negro panorama econômico, culpo o oxigênio da publicidade dado pela televisão e a mídia a um líder fascistóide de dois vinténs.

Minha distribuição de culpas se estende até mesmo ao estrangeiro, não só aos óbvios Afeganistão e Iraque, mas aos Estados Unidos e a retórica e nada mais que retórica do presidente Barack Obama.

Vou culpando Sarkozy por nepotismo flagrante. Culpo o presidente líbio, coronel Muammar Gaddafi, por não dizer coisa com coisa e estar cada dia mais parecido com o Roberto Carlos.

Minha distribuição de culpas não conhece limites. O que posso afirmar mesmo é que minha culpa não foi.

Não foi minha culpa ter ficado uivando de dor durante três dias com uma suspeita de fratura óssea no joelho.

Adotei uma bengala velha que tenho por aqui, resultado de outras mazelas antigas, e fiquei, sozinho em casa, só a gata como companhia, fazendo uma péssima imitação do dr. House, da série televisiva, distribuindo diagnósticos errados, como se pode constatar pelas linhas acima, e sem o menor senso de humor, ironia ou sarcasmo.

Posso ser burro e meio canalha, mas uma coisa eu aprendi: gato ou gata não entendem ironia ou sarcasmo.

Eu não tenho culpa de absolutamente nada. Fui sensato como sempre.

O que houve foi que no domingo de manhã, uma das janelonas antigas da cozinha estava emperrada e, apesar do outono, ventava um vento frio de rachar. Subi na sólida pia de mármore e, com as poucas forças que restam a um homem de minha idade, consegui fechá-la, o que me encheu de orgulho e moral alta. Que duraram muito pouco.

Sagaz, como alguns de meus professores me achavam, resolvi descer não devagarzinho com cuidado, mas saltando no chão de lajotas também imitando o mármore. Foi um belo salto. Eu deveria estar pensando ser um super-herói qualquer do Stan Lee. A planta do pé direito suportou a queda toda de meus anos e meu corpaço fora de forma, se algum dia a teve.

A dor foi do pé ao último fio branco da cabeça, pegando até mesmo a barba. Fiquei estiradão no chão, esperando que passasse. Não passou e chegou a hora de levantar e aborrecer a companheira.

Receitas, compressas, bolsas de gelo, consultas aos sítios especializados da internet.

E tome painkillers. Matar a dor? Só me matando junto.

Uma vez misturados com minha remediarada normal, para isso e aquilo outro, só podia dar besteira. Pura sorte não ter dado. Eu a culpo.

Fora-se minha vontade de viver.

Passou em casa, de manhãzinha, custando uma pequena fortuna um médico francês que faz parte de um serviço de emergência 24 horas por dia. Mais remédios, conselhos que qualquer tia sensata daria, uma injeção, que aliás pegou bem. Que seria?

Na terça-feira, já dava para capengar direitinho, sem bengala.

Passar bem, dr. House. Em, parte, para ser franco, eu culpo --e por que não?-- também o senhor.

 

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