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05/11/2000 - 10h04

Internet revela livro secreto do Exército

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SERGIO TORRES e MÁRIO MAGALHÃES
da Folha de S.Paulo

Uma relíquia historiográfica inédita sobre o regime militar (1964-85) começa agora a ser revelada: livro datilografado em 1.200 páginas divididas em dois volumes, escrito em 1986 e 1987, baseado integralmente no arquivo secreto do CIE (Centro de Informações do Exército) e com publicação vetada pelo Alto Comando do Exército, está sendo divulgado aos poucos na Internet.

O livro contém a versão do Exército para ações promovidas por grupos de esquerda que aderiram à luta armada para tentar depor os governos militares.

Há relatos originais sobre episódios célebres como o roubo do cofre de uma amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros e o sequestro do embaixador dos EUA Charles Burke Elbrick, ambos ocorridos em 1969. Jogam-se também novas luzes sobre a trajetória do capitão Carlos Lamarca (1937-71) -desertor do Exército que virou guerrilheiro.

O livro foi encomendado ao comando do CIE em 1986 pelo então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Teria o título de "Terrorismo Nunca Mais". Acabou vetado, nunca publicado e mantido em rigoroso segredo.

Desde maio de 2000, o grupo Terrorismo Nunca Mais, dedicado a divulgar a visão militar sobre o combate entre os órgãos de Estado e os agrupamentos esquerdistas, põe a cada quinzena, sem citar a fonte, trechos do livro na sua página na Internet (www.ternuma.com.br), na seção "Recordando a História". Só uma parte ínfima do livro já está no site.

A gênese do livro é a irritação nas Forças Armadas com a publicação, em 1985, do livro "Brasil Nunca Mais", um projeto coordenado pela Igreja com a descrição de crimes cometidos pelo regime militar, como tortura e desaparecimento de opositores.

Os militares tinham a impressão de que, após 21 anos de governos conduzidos por eles, os "derrotados de 1964" estavam ganhando a guerra pela hegemonia do balanço histórico sobre o período encerrado em 1985.

O desconforto na caserna chegou ao general Leônidas, o ministro militar mais importante, por ser do Exército, do governo civil presidido por José Sarney. Procurado na semana passada pela Folha, o ex-ministro afirmou que não faz declarações. Mesmo assim, cruzando depoimentos, foi possível reconstituir a história do livro proibido.

O general Leônidas o encomendou ao CIE entre o fim de 1985 e o início de 1986. O trabalho foi coordenado por coronéis, que tiveram acesso irrestrito ao fabuloso arquivo do centro. Ou seja: em 1986, ano em que a tarefa se concentrou, ainda existia o arquivo político do CIE, o mais volumoso e detalhado sobre o combate à guerrilha. Oficialmente, hoje, como então, o arquivo inexiste.

Em meados de 1987, a força-tarefa do CIE entregou os dois volumes ao ministro. Foi endereçada uma cópia a cada general integrante do Alto Comando, que teria decidido abortar a publicação por temer que o livro renovasse velhas polêmicas.

Nas 1.200 páginas datilografadas, foram narradas exclusivamente operações da luta armada, e não da repressão. A fonte foram relatórios policiais e militares confidenciais e documentos da esquerda apreendidos. A estrutura do livro -ao qual a Folha não teve acesso- era cronológica, com a divisão dos acontecimentos ano a ano.

No site do Ternuma, sigla do Terrorismo Nunca Mais, a distribuição dos fatos não é temporal, mas por episódio. Os trechos, contudo, são retirados do livro.

Três casos
Na Internet, a seção "Recordando a História" abre com um capítulo intitulado "A grande ação ou roubo do cofre do Adhemar", reprodução do livro.

O episódio, uma das mais ousadas iniciativas da guerrilha, é quase todo conhecido: 13 militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) roubaram no Rio o cofre da casa de Ana Capriglione, apontada também pelos relatórios militares como amante de Adhemar de Barros. O dinheiro seria fruto de uma "caixinha" mantida pelo político paulista.

Trinta e um anos depois, permanecem dois mistérios: quanto, exatamente, foi levado pela VPR e, principalmente, que fim teve uma soma sabidamente superior a US$ 2 milhões.

A versão da esquerda é de que o roubo rendeu US$ 2,5 milhões. Com base nas investigações militares e, provavelmente, em interrogatórios de presos, o arquivo do CIE permitiu cravar a cifra da mais rendosa operação da guerrilha no Brasil: US$ 2.864.000, o equivalente hoje a US$ 12,3 milhões, mais ou menos o prêmio previsto para a Mega Sena acumulada deste fim-de-semana.

O destino da dinheirama é um dos mais bem guardados segredos da luta armada. A ex-guerrilheira Maria do Carmo Brito -codinomes Lia, Madalena, Madá e Sara, conforme o livro-, um dos últimos militantes a cuidar da verba, até hoje cala sobre o assunto. Em conversas reservadas, militares que combateram as organizações esquerdistas costumam dizer que o dinheiro foi embolsado por um político exilado.

No livro transportado para a Internet, não há insinuação. Assim teria sido gasto o conteúdo do cofre: US$ 1 milhão entregue ao embaixador da Argélia no Brasil; US$ 120 mil divididos por remanescentes da VPR em Paris em 1974; US$ 130 mil "abocanhados" (o verbo é dos militares) por um intelectual de esquerda e editor francês de sobrenome Lalemant; o resto com manutenção de militantes clandestinos, financiamento de ações e compra de armas.

Outro episódio-síntese da luta armada foi o sequestro do embaixador dos EUA Charles Elbrick, quando um comando de duas organizações -Ação Libertadora Nacional e Movimento Revolucionário 8 de Outubro- obteve a libertação de 15 militantes presos.

Em 1997, o filme "O que é isso, companheiro", de Bruno Barreto, provocou bate-bocas históricos que reviraram o sequestro de Elbrick pelo avesso. Parecia não haver mais segredos.

Nos trechos extraídos do livro do CIE que foram parar na Internet, descobre-se, por exemplo, que os guerrilheiros erraram ao deixar o motorista de Elbrick ver o segundo carro em que o diplomata foi colocado e que, em 5 de setembro de 1969, um dia após o sequestro, o então guerrilheiro Fernando Gabeira, um dos sequestradores, já era seguido quando ia deixar na zona sul do Rio mensagens para o governo.

O arquivo do CIE revela ainda que tropas da Brigada Pára-Quedista do Exército, insubordinando-se contra o comando, tentaram impedir, em 6 de setembro, que o avião com os 15 banidos decolasse do Rio rumo à Argélia. Os pára-quedistas teriam se atrasado. O mais volumoso capítulo na Internet, "A trajetória de um desertor", traça o perfil, em 23 páginas, de Lamarca, o capitão que trocou o Exército pela VPR.

O texto não é o do livro -teria sido publicado em 1995 no jornal militar "Ombro a Ombro"-, mas contém informações dispersas no texto escrito nos anos 80, obtidas do dossiê sobre Carlos Lamarca guardado pelo CIE.

O mais incrível é que em 1969, quando Lamarca fugiu do quartel de Quitaúna em São Paulo, o Exército já saberia da sua conversão ao comunismo. Preferiu vigiá-lo, e ele conseguiu escapar.

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