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15/04/2001 - 00h54

Ex-diretor revela como era a espionagem

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MÁRIO MAGALHÃES
da Folha de S.Paulo

Quando o estudante Carlos Lacerda foi preso no centro do Rio panfletando no começo dos anos 1930, foi o policial Cecil de Macedo Borer quem o prendeu. Quando quatro militantes comunistas foram recrutados como agentes duplos após o levante de 1935, foi Borer quem os recrutou.

Em seguida à detenção de integralistas, em 1938, e nazistas, na década de 40, os interrogatórios foram conduzidos por Borer. Quando uma pequena tropa de espiões se infiltrou em organizações revolucionárias e sindicatos às vésperas do Movimento Militar de 1964, seu chefe era Borer.

Foi Borer (pronuncia-se "Borér") quem comandou a caçada a militantes de esquerda e partidários do governo João Goulart (61-64) nos meses posteriores ao golpe.

De 1932, quando tornou-se agente do serviço secreto do antigo Distrito Federal, até 1965, ao aposentar-se como diretor do Dops da Guanabara, Cecil Borer tornou-se uma legenda da polícia política - e sinônimo do prédio da rua da Relação, 40. Aos 87 anos, presidente do Sindicato das Empresas de Segurança Privada do Estado do Rio, ele revelou alguns de seus segredos à Folha.

Em 1932, aos 18 anos, Borer foi um dos 200 atletas convidados para ingressar na recém-criada Polícia Especial do governo de Getúlio Vargas.

Alto e parrudo, era arremessador de peso e disco do Fluminense (seu irmão mais novo, Charles, viria a ser presidente do Botafogo). Foi destacado para o quadro móvel, eufemismo que designava o serviço de inteligência (espionagem) de Vargas.

Espécie de araponga da primeira metade do século 20, evitava o prédio da Polícia Central, na rua da Relação, para não ser reconhecido. "Na época já se encostava em filhas de pessoas importantes para namorar, saber das coisas", lembra Borer. "Pela primeira vez usamos várias mulheres em serviço de inteligência no Brasil." Para obter informações, "elas iam até à cama, se necessário".

Em 1934, Borer passou a dar expediente em tempo integral na rua da Relação, como chefe de turma de sindicância e investigações. Nas semanas seguintes à Intentona Comunista de novembro de 1935, seu principal objetivo era encontrar os cabeças da conspiração. "Aliciei quatro militantes que estavam presos. Nós os soltamos, e eles nos levaram aos líderes, inclusive a Luís Carlos Prestes."

Na época, casas eram invadidas quando a repressão bem entendia: "Não havia mandado de busca e apreensão, nada disso. A polícia era o poder absoluto". Borer não é menos sincero ao falar da parcialidade da Justiça: "No Tribunal de Exceção, a priori a pessoa já estava julgada".

Sessenta e cinco anos depois das torturas que levaram à demência irreversível o comunista alemão Arthur Ernst Ewert, um dos artífices do movimento de 1935, Borer não esquece a têmpera do homem que, meses a fio de 1936, se negou a dar uma só informação aos algozes. "Foi a pessoa com maior trabalho mental, determinação e inteligência que já conheci", afirma Borer, referindo-se a Ewert por seu codinome, Harry Berger.

"Altamente preparado, Berger resistiu a todo o tipo de pressão. Batiam nele o dia inteiro no convento do morro de Santo Antônio - centro do Rio", onde estava preso, e não falava nada."

Borer diz ter conhecido Ewert quando o alemão passou pela rua da Relação. Sobre "todo o tipo de pressão", é reticente: "Punha-se de pé, nu, sem poder sentar. É normal. Se em troca disso alguém passasse informação, você usava. Quem vivesse a situação não veria nada de anormal. A ação era compatível com a circunstância. O objetivo era correr contra o tempo".

Em contraste com contemporâneos que nas décadas seguintes se obstinaram em reescrever suas biografias, Borer ainda hoje defende a extradição na qual, em 1936, Vargas entregou a judia e comunista Olga Benário, mulher de Luís Carlos Prestes, ao governo nazista da Alemanha, que a mataria num campo de concentração.

"Agora todos condenam", diz. "Na ocasião, não havia por que não atender o pedido de extradição da Alemanha." Borer esteve com Olga na rua da Relação, onde ela ficou presa dez dias. Lá, cansou-se de interrogar o secretário-geral do Partido Comunista Argentino, Rodolfo Guioldi, outro líder do "putsch" de 1935. Foi Borer quem o levou de volta a seu país de origem, onde foi libertado.

Em 1954, às vésperas do suicídio de Getúlio Vargas no dia 24 de agosto, Borer foi chamado, conforme suas memórias, para interrogar na Base Aérea do Galeão o chefe de segurança do presidente, Gregório Fortunato.

Gregório era acusado de planejar o atentado de dias antes na rua Tonelero contra o inimigo supremo de Vargas, Carlos Lacerda. Lacerda escapou, mas um segurança, o major-aviador Rubens Vaz, morreu.

Em 1960, quando seu antigo preso e depois amigo Carlos Lacerda (que abandonara o comunismo e se tornara conservador) elegeu-se governador da Guanabara, Borer deixou a direção do Dops e passou um tempo como delegado de vigilância - antes, conduzira a seção que investigava o movimento sindical.

Trocou a perseguição a adversários políticos pela procura de bandidos com apelidos como Cara de Cavalo, Coisa Ruim e Mineirinho.

Em 1963, a pedido de Lacerda, voltou ao Dops. O tempo estava ficando quente. Borer ensina uma lição dos tempos em que correu atrás de criminosos comuns: "Com os presos políticos, ao contrário do que acontece com os malandros, é preciso usar a inteligência, não só a força física".

No fim do governo Lacerda, em 1965, Borer deixou o Dops e se aposentou. "Esqueceu" o nome dos infiltrados que acompanharam o séquito de Goulart no Uruguai. Conta ter se desfeito do arquivo particular de 700 kg.

Borer assegura não ter saudade dos tempos de Dops. Não foi convidado para a cerimônia de terça-feira, que marcará a despedida simbólica da polícia. Sobre o prédio, diz: "Não é que lá residisse a repressão. Mais que isso: grande parte da história do Brasil aconteceu ali dentro".
 

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