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20/05/2001 - 03h23

"Mercado favorece os fortes", diz cardeal

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ANDRÉ SINGER
da Folha de S.Paulo

Embora não compartilhe de uma visão segundo a qual a sociedade se dividiria entre opressores e oprimidos - o que considera simplista-, d. Cláudio Hummes é um crítico firme do mercado sem controle. "O livre mercado acaba favorecendo os fortes e prejudicando os fracos."

Ao falar da corrupção no Brasil, é enfático ao dizer que ela deve ser apurada, sobretudo nos altos escalões, e "punida" com "rigor".

Aos 66 anos, d. Cláudio parece dez anos mais moço. A relativa juventude é um dos fatores que o fazem "papabile", isto é, possível sucessor de João Paulo 2º. Há indícios de que o colégio cardinalício teme entregar a condução do Vaticano a um homem idoso e doente. Outra característica que o favorece é a estrita observância da ortodoxia institucional. Quando Roma fala, ele não discute.

As críticas ao mercado fazem parte das posições defendidas pelo sumo pontífice. Junto com o conservadorismo moral e o uso de recursos modernos na evangelização, formam um tripé que pretende colocar a igreja à testa do novo milênio. Essa tríade é explicada pelo arcebispo de São Paulo na entrevista à Folha.


Folha - O sr. se tornou bispo jovem e substituiu, no ABC em 1975, uma das grandes figuras da igreja da época, d. Jorge Marcos de Oliveira. Teve medo?
D. Cláudio Hummes
- Essa pergunta me foi feita também quando vim a São Paulo, suceder d. Paulo, e, de alguma forma quando substituí d. Aloísio Lorscheider em Fortaleza. Eu costumo responder que não me incutiu medo. Eu não tenho medo dessas coisas.

Folha - O sr. se preocupa com o fato de que uma parte das CEBs tenha uma concepção de mundo mais próxima da luta de classes do que a sua?
D. Cláudio
- Eu penso que a análise da sociedade deve ser feita pelos grandes pensadores, pela ciência política e sociológica. Hoje, a grande maioria deles não analisa pura e simplesmente a sociedade como sendo uma oposição de classes. A sociedade é mais complexa do que a luta entre patrões e operários ou entre opressores e oprimidos. Você precisa de muitas outras chaves para entender a sociedade.

Folha - Ao longos dos anos 80, o sr. aproximou-se da renovação carismática. Qual a sua opinião sobre esse movimento?
D. Cláudio
- O que eles trazem de bom? É que eles tem muito a ver com a pós-modernidade. A modernidade acentuou muito o intelectualismo, a racionalidade, o racionalismo. Se pensava que ensinar doutrina era o suficiente. A pós-modernidade é uma reação contra esse racionalismo exagerado, em que se recupera o corpo, o sentimento, o coração, a gesticulação. Hoje todo o culto ao corpo que existe na sociedade, todo o culto à música popular, às festividades, à emoção, aos sentimentos, tudo isso é uma reação contra o racionalismo exagerado, frio. É preciso ficar atento para não que seja algo que deixe de dar importância à compreensão racional da fé, que é necessária.

Folha - A crença em milagres e curas milagrosas, que faz parte desses movimentos, não distorce a prática da fé?
D. Cláudio
- A igreja sempre disse que crê na possibilidade dos milagres. A igreja crê que Deus fez milagres durante a história humana. Isso significa que acontecem coisas extraordinárias que estão fora de qualquer explicação das leis naturais.

Existem, também, situações, que não são milagres "stricto sensu", nos quais Deus pode ativar forças naturais, por exemplo, para uma pessoa se curar. Nesses casos, há uma intervenção de Deus sem que ela seja independente de qualquer força natural. Porém, isso não significa que a qualquer momento a pessoa possa realizar um milagre. A igreja diz: 'Cuidado'. As curas não podem ser encomendadas em momento determinado, em horários determinados.

Folha - Usar a camisinha não é uma forma de proteger a vida? Por que a igreja condena o seu uso?
D. Cláudio
- Na medida que você propõe a camisinha como a grande defesa a favor da vida, você vai estar dizendo que o que importa é sexo seguro. O resto, tudo pode ser feito. Se tudo pode ser feito, você está atingindo seriamente a questão da vida.

A camisinha acaba sendo um risco maior, depois. Porque você acaba educando as pessoas para algo que vai atingir a vida humana dentro de um conjunto. Não só a sua vida pessoal, mas a vida humana como um conjunto. Você não pode imaginar uma sociedade que é totalmente libertina em termos sexuais e de promiscuidade, contanto que ela use camisinha. E é isso o que você pode ver na propaganda que se faz. Se diz: "Use camisinha para sexo seguro". É o único que se diz. A igreja não pode entrar nesse discurso.

Folha - Por que a igreja não aceita o casamento entre homossexuais?
D. Cláudio
- Porque a igreja não aceita a homossexualidade. Ela jamais condena, atinge ou discrimina quem tem a tendência homossexual. Mas a prática da homossexualidade ela não pode aceitar.

Folha - Por que a sexualidade só pode estar a serviço da reprodução?
D. Cláudio
- Não, da vida matrimonial. A vida matrimonial é mais do que a reprodução. Na vida matrimonial, a sexualidade faz parte, para ajudar a união e a comunhão dos cônjuges.

Folha - Por que não se pode aceitar o aborto quando há risco de vida da mãe?
D. Cláudio
- Você não pode matar uma vida para salvar o outra. A posição da igreja é que se deve fazer tudo para salvar as duas.

Folha - O consistório que começa do dia 21 vai reforçar a linha que a igreja brasileira tem adotado a favor de uma revisão do pagamento da dívida externa?
D. Cláudio
- A igreja aqui sempre se manifestou no sentido de que, para os países pobres onde pesa demais a dívida, mesmo que ela for justa, deveria ser perdoada.

Também é preciso saber qual parte da dívida a sociedade como um todo deveria assumir e qual parte da dívida é de empresas, de bancos, em que a sociedade não deveria entrar.

Folha - Há quem diga que essa posição da igreja vai contra o livre funcionamento do mercado.
D. Cláudio
- Eu creio que hoje há uma consciência crescente -eu diria que até majoritária - de que o puro mercado não pode ser defendido. O livre mercado acaba favorecendo sempre os fortes e desfavorecendo os fracos.

O Estado é que deve traçar os limites até onde pode avançar o forte, com toda a sua força, sobre o fraco. Isso é ser uma força moderadora do próprio mercado. Quem defende o livre mercado, pura e simplesmente, começa a ver que isso não pode durar em função do desemprego em massa.

Folha - O que se deve fazer com relação à corrupção no Brasil?
D. Cláudio
- A corrupção deve ser apurada, sobretudo nos altos escalões, porque eles deveriam ser modelares. Se há corrupção ali, ela deve ser apurada completamente, até o fim, e punida.

De que forma deve ser essa apuração e punição, não é a igreja que tem competência para dizer. São decisões que devem ser tomadas por aqueles que representam a sociedade. Deve ser decidido pelos órgãos da democracia.
Mas ela deve ser punida e, muitas vezes até, com rigor, para que isso comece a ter paradeiro, para que não seja verdade nem se dê a impressão de ser verdade, de que o crime compensa.

Folha - Ao longo da história da igreja sempre houve uma tensão entre orar e atuar. Para o sr. o que é mais importante: orar ou atuar?
D. Cláudio
- Não se pode colocar a questão dessa forma. Não se pode atuar sem oração e não se pode só orar, sem ação. As duas coisas se auto-alimentam. As duas fazem parte do espírito. Se você me perguntasse se o espírito é mais importante ou a matéria, eu diria: "O espírito é mais importante que a matéria". A ação e a oração são manifestações do espírito. A ação também vem do espírito. As duas são fundamentais para a igreja. Há agrupamentos que mais oram do que atuam. Há outras que se dedicam muito à ação pastoral, sem dar tanto realce à liturgia.
 

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