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15/08/2001 - 03h12

Exército espiona sem-terra desde 1998

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JOSIAS DE SOUZA
da Folha de S. Paulo, em Brasília

O Exército deflagrou no final de 1998 um plano secreto para espionar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Chama-se "Operação Pescado". É financiada com verbas públicas ocultas. Possui duração "indeterminada". Continua em vigor.

Em troca de irrisórias contribuições em dinheiro e pequenos favores -como consultas médicas-, uma "rede de informantes" coleta para o Exército dados sobre o MST, suas lideranças, políticos e partidos simpatizantes.

Informações como essa, registrada em documento secreto de 25 de abril de 2000: "[...] foi verificado que o MST, juntamente com a CUT e o PT, vem montando uma brigada formada para o ataque e defesa em suas operações".

O texto prossegue: "Conhecida como Brigada Cabanos, essa parcela do movimento tem se revelado uma organização paramilitar. É um dado que deve ser observado e confirmado durante as missões". "Tendo em vista o ano corrente ser eleitoral", anotou o serviço de inteligência do Exército no mesmo texto, "os partidos de oposição com certeza apoiarão, de forma direta e indireta, as ações de diversas entidades que têm como objetivo a desordem".

"Tumultuar a ordem"
Num ponto, o "informe" do Exército se confirmou. Como noticiavam todos os jornais do país, houve mesmo eleições em 2000. Sob atmosfera pacífica, o pleito municipal ocorreu em outubro, seis meses depois da produção do relatório da arapongagem.

As legendas oposicionistas, de fato, produziram certa desordem na seara governista. Não em ações armadas ou em manifestações de rua, mas nas urnas.

Das 16 prefeituras disputadas no segundo turno, a oposição amealhou 13. Arrematou 27 das 57 cidades com mais de 200 mil habitantes levadas ao voto no primeiro turno.

Os espiões vinculados à 23ª Brigada de Infantaria de Selva produzem "informes" semanais sobre o MST. A brigada está vinculada ao CMA (Comando Militar da Amazônia), que cobre uma área correspondente a 9% do território nacional.

Os textos são redigidos num escritório de inteligência que funciona numa casa em área residencial de Marabá (PA). Seguem por uma escada hierárquica que vai do comando na Amazônia até Brasília.

Muitas informações ganham a mesa do ministro Alberto Cardoso (Segurança Institucional), no quarto andar do Palácio do Planalto. Algumas, depois de filtradas, escalam a escrivaninha do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não chegam caracterizadas como material proveniente do Exército.

Em 25 de abril passado, o governo foi informado, por exemplo, sobre protestos que o MST programava para o 1º de Maio. Informou-se também sobre a vulnerabilidade de uma estrada de ferro da Companhia Vale do Rio Doce, que corta o assentamento Palmares, no Pará, "um possível local para bloqueio" dos sem-terra.

Ao justificar a necessidade de "levantar e acompanhar as diversas atividades dos movimentos sociais de luta pela terra", o Exército traçou um perfil revolucionário do MST.

Classificou-o como movimento que empreende ações "com o objetivo definido de tumultuar a ordem vigente e comprometer a confiança nas instituições e no regime atual do governo".

"Força adversa"
A cada novo relatório, os agentes aconselham o prosseguimento da operação. Em 30 de agosto de 2000, o capitão André Luiz Guimarães Silva, de Marabá, anotou:

"A operação [Pescado" deve continuar, devido aos resultados alcançados, às perspectivas de obter melhores resultados e à importância de manter um constante acompanhamento do alvo, que pode se tornar, a qualquer momento, força adversa em operações de garantia da lei e da ordem".

"Força adversa", conforme revelou a Folha em sua edição de 2 de agosto, é definida assim nos papéis secretos do escritório de espionagem de Marabá:

"São grupos, movimentos sociais, entidades e organizações não-governamentais [...] que provocam reflexos negativos para a segurança nacional. No momento atual, verificam-se exemplos dessas entidades no crime organizado, no narcotráfico e nos movimentos populares como o MST".

Embora seja a vedete da "Operação Pescado", o MST não é a única sigla sob vigilância.

Monitora-se uma legião de consoantes: MLT (Movimento de Luta pela Terra), MTRB (Movimento dos Trabalhadores Rurais Brasileiros), MNT (Movimento Nacional dos Trabalhadores), MMBTRST (Movimento Muda Brasil dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e CPT (Comissão Pastoral da Terra), braço da Igreja Católica no campo.

"Dinheiro para informante"
Por razões de segurança, o Exército não infiltra seus próprios agentes em acampamentos e reuniões do MST. Prefere obter informações por meio de colaboradores. Chama-os por pseudônimos aquáticos: Pirarucu, Dourado, Pintado, Lambari, Poraquê etc. A Folha deixa de publicar nomes reais de informantes do Exército, para não expô-los a risco.

Os arapongas cercam os seus "peixes" de atenções: "os agentes têm obtido a confiança dos informantes e colaboradores, procurando ajudá-los na solução de problemas pessoais e profissionais", diz relatório secreto de 31 de agosto de 2000.

"Foi repassada uma quantia de R$ 100 em dinheiro para o informante Lambari, que estava com dificuldades financeiras", informa relatório de 30 de abril de 1999. "Foi repassado, a título de empréstimo, o valor de R$ 100 para o informante Pirarucu", anota documento de 30 de abril de 2000.

Em alguns casos, os afagos monetários surtem efeito : "Pirarucu tem sido prestativo", diz documento de 22 de dezembro de 2000. "Vem alimentando o OI [órgão de informação] com dados de interesse para o sistema. Depois que recebeu ajuda financeira, demonstrou-se muito interessado em manter o órgão informado dos assuntos que nos são de interesse."

"Ajuda de saúde"
Há também casos de insucesso. Como o registrado em documento de 31 de agosto de 1999: "o informante Lambari não foi procurado pelos agentes por demonstrar falta de responsabilidade e ser uma pessoa que se esquiva do serviço. Deve ser desligado".

Nem só de reais se alimentam os "peixes" do Exército. Servem-se, por exemplo, de um inusitado plano de assistência médica: "Quando os informantes necessitam de alguma ajuda de saúde para si ou para os seus dependentes, são encaminhados ao hospital da guarnição, onde são atendidos prontamente", anota o relatório de 30 de abril de 1999. "Caso seja necessário ser efetuado algum exame particular, dentro das possibilidades, o órgão de informação auxilia no pagamento."

A Folha revelou no último dia 25 de julho que o Exército vem distribuindo cestas de alimentos a ex-colaboradores dos tempos da guerrilha do Araguaia. Em troca, pede que guardem silêncio sobre o que se passou no sul do Pará entre os anos de 1972 e 1974.

Descobre-se agora que, além de agir como força auxiliar do programa Comunidade Solidária, há ocasiões em que o Exército faz as vezes de Ministério da Saúde.

Em dois anos e meio de espionagem, o Exército produziu cerca de cem relatórios sobre o MST só na Amazônia.

Nessa região, o responsável pela "Operação Pescado" é o major Adriano de Souza Azevedo, comandante do escritório de inteligência do Exército em Marabá.

O trabalho varre 37 municípios, entre eles Eldorado dos Carajás e Parauapebas, notabilizados pelo episódio que resultou no massacre de 19 sem-terra em 1996.

Utilizam-se equipamentos que vão da simples máquina fotográfica a telefones celulares por satélite e sofisticados sistemas de escuta eletrônica.

A publicação desta reportagem avilta um dos alicerces da "Operação Pescado". Previa-se que o sigilo deveria permear todas as fases da missão, do planejamento à execução.


 

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