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20/08/2001 - 03h42

Constituição favorece excessos de militares, afirma cientista político

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ERILENE ARAÚJO
da Agência Folha, em Fortaleza

Ao atribuir às Forças Armadas o papel de garantidoras da lei e da ordem, a Constituição brasileira acaba abrindo brechas para que a inteligência militar se permita "arranhar direito dos cidadãos", conforme relatam documentos secretos revelados pela Folha.

A análise é do professor do mestrado de ciência política da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Jorge Zaverucha, 45, autor, entre outros, do livro "Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares (1990-1998)", lançado pela editora Civilização Brasileira no ano passado.

A Folha revelou, no dia 2 de agosto, que o Exército pratica uma política de inteligência onde classifica movimentos sociais como "forças adversas" admitindo até "arranhar direitos".

Na semana passada, o próprio ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Alberto Cardoso, ao defender ações secretas do Exército de espionar movimentos sociais, afirma que essa é uma "missão constitucional".

Para o cientista político, o problema reside justamente nessa questão. "Somente as constituições do Chile, de Pinochet, e da Nicarágua sandinista conferem tanto poder às Forças Armadas."

A demonstração de poder e influência política dos militares pode ser conferida no Orçamento da União, onde o Ministério da Defesa, junto com o da Saúde, é o segundo maior beneficiado.

Leia a seguir trechos da entrevista de Zaverucha:

Agência Folha - O sr. acredita que o Comando do Exército não tinha conhecimento dos documentos que falavam em "arranhar os direitos do cidadão"?
Jorge Zaverucha -
O comandante-geral do Exército não saber do fato é um dado preocupante, pois os documentos mostram que não se trata de uma ação isolada, mas de cunho institucional. Também é péssimo para a democracia se o presidente for o único a não ter conhecimento. Será ainda pior se ninguém for responsabilizado. O tamanho do estrago na cadeia do comando saberemos em breve.

Agência Folha - O sr. acha que os serviços de inteligência das Forças Armadas representam risco à democracia?
Zaverucha -
Nos regimes democráticos, os serviços de inteligência militar dedicam-se a defender as fronteiras, o patrimônio e a integridade dos membros das Forças Armadas. Também nos regimes democráticos, são os poderes constitucionais que garantem o funcionamento das Forças Armadas, pois o poder não é deferido a quem tem força. Como temos uma Constituição que confere às Forças Armadas o antidemocrático papel de garantidores da lei e da ordem, os constituintes abriram a possibilidade de que tais serviços se voltem para assuntos domésticos. Eu digo que o papel é antidemocrático porque, de acordo com o artigo 142 da Constituição Federal, são as Forças Armadas que garantem o funcionamento dos poderes constitucionais, a lei e a ordem. O contrário do que acontece nas democracias.
A questão é que a noção de lei e de ordem envolve julgamentos ideológicos, e o artigo não especifica que lei e que ordem são essas. É a lei constitucional ou a lei ordinária? E a ordem é política, social ou moral? Quem é que define quando a lei e a ordem são violadas? Basta que uma ordem do Executivo seja considerada ofensiva para que os militares possam, constitucionalmente, não respeitá-la, mesmo sendo o presidente o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Na América Latina, somente as constituições do Chile, de Pinochet, e da Nicarágua sandinista conferem tanto poder às Forças Armadas.

Agência Folha - A criação da Abin seria um retrocesso?
Zaverucha -
Em tese não, mas da forma como vem sendo conduzida sim. A lei que aprovou a criação da Abin dizia que ela deveria ficar diretamente subordinada ao presidente. Depois, FHC, via MP, transferiu essa subordinação para o Gabinete da Segurança Institucional, que é comandado pelo general Alberto Cardoso. É ele quem dirige a Secretaria Nacional Antidrogas e é o primeiro secretário do Conselho de Defesa Nacional.
Como se não bastasse, FHC decretou a criação do Subsistema Brasileiro de Inteligência e Segurança Publica, tendo a Abin como órgão central. Foi criado ainda o Conselho Especial do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, também vinculado ao Gabinete da Segurança Institucional.
Um detalhe importante é que dos 11 membros deste Conselho 6 são militares. Isso quer dizer que todas as informações cedidas pelas secretarias da Segurança Pública caem no colo dos militares. É a velha ótica do inimigo interno.

Agência Folha - O Executivo e o Legislativo não têm força para mudar isso?
Zaverucha -
O problema é que o Congresso é dominado por forças conservadoras que não querem se indispor com o Exército.

Agência Folha - O sr. acha que o presidente deveria ser mais duro na cobrança de explicações do Exército sobre o caso do Pará?
Zaverucha -
No ano passado, FHC teria tido a intenção de demitir o comandante do Exército. Quando a decisão presidencial chegou aos quartéis, 155 generais de todo o país se reuniram em Brasília, sem a presença do ministro da Defesa, Geraldo Quintão, em ato de desagravo. O presidente entendeu a mensagem e desistiu da demissão. As coisas ficam assim: o Exército não dá golpe, mas não deixa que o Estado avance para um regime democrático. Isso é o que eu chamo de democracia tutelada.

Agência Folha - Mesmo sem poder para interferir, o governo federal dá munição para que o Exército se mantenha com tanta força?
Zaverucha -
Para você ter uma idéia, o orçamento do Ministério da Defesa para 2000 foi o segundo maior da União. Tecnicamente empatado com o da Saúde e menor apenas que o da Previdência. Como explicar isso num país com tantas carências sociais e cuja última guerra foi contra o Paraguai?

Agência Folha - Os gastos do governo federal não seriam elevados neste setor por conta dos inativos?
Zaverucha -
Isso contribui, mas não explica. O principal é discutir prioridades. Mais canhões e menos manteiga? Política é a arte das opções, e a opção reflete, no fundo, a visão ideológica de seu formulador.

Agência Folha - O sr. diria que não houve avanço do governo FHC em relação aos ex-presidente Fernando Collor e Itamar Franco?
Zaverucha -
Collor foi o presidente que mais fustigou os interesses militares. Ele aboliu o SNI, as Divisões de Segurança Interna (DSI), as Assessorias de Segurança Interna (ASI) e a Secretaria de Assessoramento de Defesa Nacional (Saden). Esvaziou a Secretaria Especial de Informática (SEI) e fechou o campo de provas nucleares na Serra do Cachimbo. Enquanto teve pernas, concedeu aumento simultâneo para o funcionalismo civil e militar. As Forças Armadas viram com bom grado o afastamento de Collor e por isso não interferiram. No governo FHC, a criação do Ministério da Defesa é um avanço tímido. Como disse o deputado federal Benito Gama (PMDB-BA), na época o relator do projeto, o ministro da Defesa é uma espécie de rainha da Inglaterra. Um grande retrocesso de FHC foi ter aumentado o controle do Exército sobre as polícias.

Agência Folha - Antes, o Exército combatia o comunismo. O sr. diria que hoje os inimigos são os sem-terra e os movimentos sociais?
Zaverucha -
Parte do MST tem um discurso revolucionário leninista, e isto também é uma ameaça à democracia desde que eles estejam com armas em mãos. Contudo, comparar os sem-terra aos narcotraficantes denota falta de visão social e insensibilidade política. Os inimigos do país são os excluídos e desvalidos, que podem se organizar para pegar um pedaço do bolo.

Agência Folha - O governo vai conseguir resolver o problema da segurança com as novas medidas anunciadas no início do mês?
Zaverucha -
Em 97, o presidente Fernando Henrique Cardoso formou um grupo de trabalho para reestruturar as polícias. A portaria que criou tal grupo mencionava corretamente que o atual modelo institucional de segurança pública foi estruturado, em sua maior parte, num período anterior à promulgação da Constituição de 88. Mesmo sabendo disso, o governo nada fez para acabar com esse enclave autoritário dentro do aparelho de Estado. Também não está fazendo nada agora.

Agência Folha - O que o sr. acha da possibilidade de ser feito um projeto de lei permitindo a dissolução de associações que incentivem greves ou atuem como sindicatos?
Zaverucha -
A Constituição já proíbe a greve de policiais militares. Acho que deveriam ser resolvidas outras variáveis, como melhorar salários, atenuar os códigos militares, elaborar um plano de cargos e salários que incentive a mobilidade social no interior da organização.

Também deveria ser dado um fim na influência partidária dentro da organização, a começar pelos governadores dos Estados. Por exemplo: o governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos (PMDB), promoveu alguns militares que comandaram a greve feita durante o governo Miguel Arraes. Ele fez do coronel Roberto Carvalho, líder da greve de 97, o comandante geral da PM. Hoje, ele quer punir quem faz greve em seu governo e é um dos que mais cobram do governo federal medidas duras contra os grevistas.


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