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14/01/2002 - 07h23

Analista vê vácuo de liderança na Argentina

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MÁRCIO SENNE DE MORAES
da Folha de S.Paulo

Como não investiram no país nem fizeram o que era necessário para modernizar sua estrutura produtiva, as elites argentinas contribuíram para que a situação chegasse ao ponto atual. O principal problema argentino não é econômico, mas político. Trata-se de um vácuo de liderança que assola a esquerda, o centro e a direita. Os líderes criaram a anomia atual. Assim, está na hora de a Argentina ter uma classe política mais responsável e mais séria.

A análise é do brasileiro Alfredo Valladão, responsável pela cátedra Mercosul no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Para ele, a problemática atual constitui uma espécie de crise de crescimento ou de amadurecimento da democracia na América Latina, onde há uma forte tomada de consciência por parte das populações no que se refere à necessidade da existência de honestidade e de idoneidade na política.

Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - O sr. acredita que a crise atual argentina se insira dentro de um processo histórico?
Alfredo Valladão -
Sim, creio que ela se insira num processo histórico bastante amplo. Nos últimos 60 ou 70 anos, a Argentina viveu com uma ilusão do começo do século 20. Trata-se de uma tese que era bastante popular na América Latina, a idéia de que bastava ter alguns recursos naturais importantes e vendê-los ao exterior para que a população do país pudesse viver em boas condições.

Assim, o que aconteceu agora se enquadra nesse contexto. Afinal, as elites políticas argentinas nunca tentaram modernizar verdadeiramente a economia do país para buscar inseri-lo no processo de modernização da economia mundial. Como não investiram nem fizeram o que era necessário para modernizar a estrutura produtiva argentina, as elites contribuíram para que a situação chegasse a esse ponto.

Logicamente, também há motivos circunstanciais para a crise atual. Entretanto a razão fundamental e mais profunda diz respeito a essa inadaptação da classe política e da economia argentina ao mundo moderno. Como era um país relativamente abastado e com uma população educada, a Argentina conseguia empurrar o problema, porém essa situação era insustentável a longo prazo.

Folha - O fato de a população argentina ter participado ativamente da cena política recentemente mostra a maturidade democrática do país e da América Latina ou constitui uma ameaça às instituições democráticas?
Valladão -
Os dois aspectos coexistem. De um lado, há uma tomada de consciência muito marcante por parte das populações da América Latina no que se refere à necessidade da existência de honestidade e de idoneidade na política. Essa tendência está se intensificando, e as demonstrações de cidadania vistas na Argentina mostram isso, o que é um fator bastante positivo.

Por outro lado, o aspecto negativo é que, na Argentina -talvez mais do que em outros países da América do Sul-, há uma espécie de desconfiança generalizada da população em relação aos políticos. Isso não só contra um determinado partido mas contra toda a classe política -seja de esquerda, seja de direita.

Isso ocorre porque as elites latino-americanas e, sobretudo, as argentinas não se comprometem verdadeiramente com o crescimento de seu próprio país. Ninguém quer assumir as responsabilidades necessárias. Esse é, portanto, o lado negativo, já que a desconfiança generalizada em relação aos políticos pode levar ao aparecimento de caudilhos ou de "salvadores da pátria". E sabemos o quanto isso é prejudicial às instituições democráticas.

Não podemos esquecer, no entanto, que há essa vontade popular de manter e de solidificar a democracia, acabando com a corrupção que mina as instituições democráticas. Assim, sabemos que há tanto o lado positivo quanto o negativo nesse contexto.

Folha - Vários países latino-americanos viveram sob regimes militares na segunda metade do século passado e, em seguida, passaram por processos de democratização. O sr. crê que o que ocorreu na Argentina possa propagar-se para outros Estados da região?
Valladão -
Toda a problemática atual me parece uma espécie de crise de crescimento ou de amadurecimento da democracia na América Latina. Além disso, devemos separar o lado andino da América do Sul do que poderíamos chamar de Cone Sul, no qual se encontra o Brasil.

No Cone Sul, houve um fortalecimento dos movimentos e das instituições democráticas na última década. Algo fundamental nesse quadro é a cláusula democrática que faz parte dos textos do Mercosul. Se não for democrático, um Estado não poderá fazer parte do bloco. Outro exemplo foi o trabalho realizado pelos países vizinhos [Brasil e Argentina] quando houve uma tentativa de golpe no Paraguai em meados da década de 1990.

Não acredito que, atualmente, haja uma involução. Afinal, o que realmente existe é uma participação cada vez maior da sociedade civil dentro da cena política, o que, além de ser positivo, é novo na América Latina. É claro que isso leva a grandes discussões políticas, podendo até provocar crises, mas isso é benéfico para a democracia. Essa tendência só será prejudicial se desembocar no velho populismo latino-americano, como aconteceu na Venezuela com o presidente Hugo Chávez.

Por enquanto, não vejo esse perigo rondando o Brasil, pois as populações tanto no Brasil quanto na América Latina estão cada vez mais conscientes de que não há um "salvador da pátria". Não existe solução miraculosa. O único remédio é mais democracia, mais trabalho, mais seriedade econômica e menos corrupção, o que não pode ser atingido com regimes autoritários.

Folha - Apesar disso, se o presidente Eduardo Duhalde fracassar, assim como seu antecessor, Adolfo Rodriguez Saá, há o perigo de um golpe militar na Argentina?
Valladão -
Acho muito difícil por algumas razões. É quase inviável pôr no poder um Exército que perdeu uma guerra. Após a derrota na Guerra das Malvinas [1982, contra o Reino Unido] e todo o período de repressão ocorrido no final da década de 1970, os militares argentinos perderam boa parte de sua credibilidade.

Hoje as Forças Armadas argentinas encontram-se bastante enfraquecidas, e duvido de que haja militares dispostos a assumir a responsabilidade de gerir a situação gravíssima que o país está vivendo. Seria mais um modo de macular a instituição militar.

Assim, é improvável que haja um golpe militar. Isso só ocorreria se a anomia atual levasse o país a um estado de anarquia total. E, mesmo assim, creio que os militares só agiriam se encontrassem respaldo político ou popular.

Folha - Como a crise afeta o Mercosul (bloco composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai)?
Valladão -
Temos de torcer para que a instabilidade argentina dê novo impulso ao Mercosul, já que, a partir de agora, o Brasil e a Argentina podem ter políticas econômicas convergentes. Nenhum dos dois Estados pode prescindir do Mercosul. Mesmo o Brasil, que é um país muito maior e mais industrializado que a Argentina, não tem condições de ser bem-sucedido sozinho dentro da cena internacional.

Para que possam participar ativamente da economia global, ambos os países precisam do Mercosul. O Brasil não pode abrir mão dele nem das relações privilegiadas com seu maior parceiro, a Argentina. Queiramos ou não, a Argentina sempre será nossa vizinha. Temos interesse em viver ao lado de uma Argentina forte e próspera, não ao lado de um país enfraquecido e anárquico.

Nesse contexto, é possível que essa crise atual ajude o Mercosul. Isso ocorrerá se os dirigentes brasileiros tomarem consciência da necessidade de intensificar a integração institucional do bloco, o que Brasília não fez muito nos últimos anos. Isso permitirá que esse tipo de crise seja mais bem administrado no futuro.

Ao mesmo tempo, na Argentina, a classe política terá de perceber que o Brasil é um parceiro indispensável. Além disso, o fim do Mercosul seria grave para ambos os países no que se refere a negociações internacionais futuras.

Folha - Como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) se insere nesse quadro?
Valladão -
As negociações relacionadas à Alca vão depender muito da atitude dos EUA nos próximos meses. Creio que tanto a Argentina quanto o Brasil precisem da Alca, pois o continente americano é o maior mercado de ambos no que concerne aos grandes blocos mundiais atuais. Isso é irrefutável, e quem diz que a China, a Índia e a Rússia podem substituir o mercado das Américas não sabe o que está falando.

Isso talvez se torne verdade num futuro longínquo, mas, por enquanto, nossos maiores mercados estão na América do Sul e na América do Norte. Nosso problema hoje diz respeito ao modo de negociar a Alca, porém sua existência não é mais questionada. Num primeiro momento, a crise argentina mina a posição brasileira e a do Mercosul no que se refere às discussões relacionadas à Alca.

Assim, será ótimo se a Argentina e o Mercosul puderem estar em condições mais estáveis quando as negociações tiverem início. Todavia não há apenas a Alca, visto que também negociamos uma aproximação com a União Européia. Esse "triângulo atlântico", entre a América do Sul, a América do Norte e a Europa, é fundamental para a Argentina e para o Brasil, já que, assim, ambos terão mais margem de manobra em discussões internacionais. A Alca é um desafio, mas não é negativa.

Folha - Voltando à crise propriamente dita, qual é a diferença, se é que ela existe, entre o consenso contrário aos políticos e a idéia de que a democracia é incapaz de resolver os problemas argentinos?
Valladão -
Não creio que possamos dizer que essa idéia já está enraizada na Argentina. Como vimos recentemente, os argentinos querem mais democracia, buscam um verdadeiro sistema democrático. Atualmente, os argentinos lutam contra essa pseudo-democracia, contra um regime em que há corrupção generalizada e irresponsabilidade política.

Na Argentina, o problema central hoje não diz respeito à democracia, mas às elites do país: investidores, industriais, políticos etc. Não há um consenso sobre o rumo que o país deve seguir. O setor financeiro não se entende com o industrial, que, por sua vez, não concorda com o agrário e assim por diante. Falta mais responsabilidade à classe política e às outras elites argentinas.

Uma das grandes diferenças entre a Argentina e o Brasil diz respeito a essas elites. Na Argentina, elas preferiram enviar dinheiro ao exterior a investir dentro do próprio país, o que não ocorreu nem ocorre em grande escala no Brasil. Assim, creio que as elites argentinas passem por uma crise de responsabilidade. E é possível que esse terrível período que a Argentina está atravessando seja um momento de conscientização dessas elites. Afinal, elas têm de decidir se estão comprometidas com o futuro do país ou se querem mudar-se para Miami.

Folha - Duhalde poderá conquistar a legitimidade que a eleição presidencial de 1999 lhe negou?
Valladão -
Atualmente, a legitimidade de qualquer político argentino depende do modo como a crise será administrada. Isso porque qualquer solução será muito dolorosa para a população. Tudo gira, portanto, em torno da questão de como essa dor será administrada. Será que ela será gerida como sempre? Ou seja, a população pagará o preço mais alto enquanto as elites serão poupadas mais uma vez? Se agir assim, Duhalde não conquistará a legitimidade de que tanto precisa.

Folha - As articulações políticas dos últimos dias demonstraram a montagem de um mecanismo de apoio baseado sobretudo nos governadores. No plano político, isso sinaliza algo sólido e viável ou apenas denota que o fisiologismo deve marcar os próximos anos?
Valladão -
Ambos os casos são possíveis. Obviamente, os governadores representam canais privilegiados de fisiologismo. Por outro lado, na situação atual argentina -em que o governo central praticamente deixou de existir-, não há solução possível sem a participação dos governadores.
Outro grave problema argentino diz respeito às divisões existentes dentro do Partido Justicialista [peronista]. Afinal, a maioria dos governadores é peronista, e cada um deles é um barão dentro do peronismo. Cada governador tem suas ambições pessoais, gerando um caos político. O próprio Rodriguez Saá acabou caindo porque não queria aceitar o jogo do partido. Foi a pressão de seus próprios companheiros de partido que o derrubou.

Como dizia [o escritor Jorge Luis] Borges, "os peronistas não são nem bons nem maus, eles são incorrigíveis". Aí está o problema. O peronismo, que tem sido a espinha dorsal da cena política argentina nos últimos 50 anos, terá de modernizar-se, já que, se não o fizer, ele acabará explodindo. Sem dúvida, a solução da crise passa por essa transformação do peronismo, no qual os governadores são bastante influentes.

Em resumo, o vácuo de liderança é um problema gravíssimo. Desde o princípio, tenho dito que o principal problema argentino não é econômico, mas político. Trata-se de um vácuo de liderança que assola a esquerda, o centro e a direita. Os líderes atuais criaram a anomia política argentina. Está na hora de a Argentina ter uma classe política mais responsável e mais séria.
 

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