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14/01/2002 - 18h39

Veja íntegra do discurso de FHC em entrega de título em Moscou

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da Folha Online

Acompanhe, a seguir, o discurso de Fernando Henrique Cardoso durante a entrega do título de doutor "honoris causa" da Universidade de Moscou.

"Sinto-me honrado com o título que me é concedido pela Universidade de Moscou. Recebo a homenagem como um gesto de amizade ao Brasil e seu povo. Não há como vir à Casa de Mikhail Lomonosov sem recordar a impressão profunda que sempre me causou a cultura russa.

A começar pela natureza da filiação deste país ao Ocidente, tema que percorre a história da Rússia e me parece revelar afinidades com a situação brasileira.

Costumo dizer que o Brasil é uma Rússia Tropical. Quero com isso ressaltar o fato de os dois países estarem inscritos de maneira singular no Ocidente, de constituírem uma espécie de outro Ocidente.

A imagem que de si projetam os povos russo e brasileiro foi construída ao longo de um diálogo duradouro e por vezes tenso com o pensamento ocidental, ora assumido como modelo, ora como espelho invertido daquilo que éramos ou nos sentíamos credenciados a ser.

Isso não ocorreu por conta do ânimo de nossas elites, mas está associado à própria formação ética de ambas as nações. Se a Rússia teve de contemporizar a influência ocidental com o passado eslavo e um rico mosaico de contribuições orientais, no Brasil a matriz ibérica transigiu com as culturas indígenas, africanas e dos vários povos que lá aportaram no decorrer dos últimos séculos, entre os quais milhões de árabes, judeus e asiáticos.

O processo de acomodação das idéias importadas com os padrões locais de organização social e econômica foi pleno de ambiguidades. O empenho de Lomonosov e seus pares em naturalizar o discurso iluminista em ambiente marcado pela servidão encontra paralelo na conivência dos ideólogos da emancipação do Brasil com a escravidão e o latifúndio. As idéias soavam construções no vácuo, tamanho era seu descompasso com a realidade.

Disso creio que se ressentiram Turguêniev, Belinsky, Herzen e os demais "jovens radicais" ao lançarem mão do idealismo hegeliano no combate a Nicolau 1º.

Exatamente na mesma época, meados do século 19, um "bando de idéias novas" começou a ditar o discurso dos intelectuais brasileiros, como dizia o grande intelectual Sílvio Romero. Autores tão diversos quanto Tocqueville, Spencer e Comte foram mobilizados para nos ditar o caminho da modernidade.

O resultado foi uma adulteração do sentido das idéias, assimiladas para atender a fins por vezes opostos àqueles a que serviam nos países de origem, o que nem sempre implicou a legitimação do atraso. Vejamos, por exemplo, como se deu a adoção do positivismo no Brasil. De emblema da ordem em Comte, a doutrina se resumiu entre nós a signo do progresso. Seus ímpetos uniformizadores se viram mitigados pela formação social brasileira, plural, desordenada.

Com o modernismo, já no século 20, levaríamos a crença no progresso ao paroxismo. Sem os vícios das sociedades mais avançadas, puro, mas engenhoso, o povo brasileiro _como acreditava Oswald de Andrade_ estaria credenciado a saltar do atraso para a modernidade, devorando o civilizador, produzindo uma ordem social mais amena e fraterna. Foi o tempo em que Ana Akhmatova cunhava a expressão "estrela da manhã", que tanto apelo teve para a esquerda, sequiosa de um novo tempo.

A expressão viria a constar de poemas de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira. Malgrado a profecia dos poetas, o tempo anunciado não se fez presente. Ou, parodiando Vladimir Maiakovski, o futuro não desatou. Nem a União Soviética nem nas experiências afinadas com o socialismo real ao redor do mundo, inclusive na América Latina.

O pensamento conservador se apressou em identificar a Queda do Muro com o fim da história, quando, na verdade, ocorreu o contrário. A falência do comunismo ajudou a desautorizar as concepções finalistas ou teleológicas da experiência humana. A história deixou de ter um desenlace necessário. A política se viu revalidada como um processo em aberto, sem atores privilegiados ou omniscientes.

Daí o prestígio renovado da democracia. Daí a aceitação generalizada de que o bem comum deve ser perseguido por regras sempre passíveis de atualização, desde que para tanto se manifeste a maioria, segundo procedimentos que acatem o dissenso, a diferença, o conflito.

É esta a linguagem hoje predominante na Rússia e também no Brasil: a linguagem da democracia, que os conservadores associam à ausência de utopias. Outro equívoco, sobretudo se pensamos em sociedades em permanente construção como o são a russa e a brasileira.

A imaginação de nossos povos é tão larga quanto o espaço de que dispõem. Talvez até por força do pluralismo cultural que lhes é inato e reclama a multiplicidade de pontos-de-vista. Nada nos soa, aos russos e aos brasileiros, unidimensional, definitivo, categórico. Um intelectual amigo, Albert Hirschman, lembra que um dos ganhos teóricos do malogro do comunismo foi o de confirmar quão precária era a noção de que o conflito de classes era um dilema indissolúvel, refratário a soluções duradouras, sustentáveis.

Temo que nos últimos meses, na vaga dos atentados de 11 de setembro, outra falácia do gênero esteja seduzindo mentes, qual seja, a de que a Humanidade estaria diante de uma nova "contradição antagônica", que seria o conflito das civilizações ocidental e muçulmana. Ignora-se que os dois mundos não são blocos monolíticos, que comportam variações e, se o dogma é comum a ambos, também o são os valores da tolerância e da fraternidade.

Países como a Rússia e o Brasil sabem disso e podem concorrer para a prevalência de um ambiente menos volátil, mais transigente, o que requer um apoio decidido ao equacionamento do confronto entre israelenses e palestinos. Inspirado na convivência harmoniosa entre suas comunidades árabe e israelita, que tanto têm contribuído para a coesão nacional, o Brasil está pronto a se coordenar com a Rússia na discussão de fórmulas que possam ajudar a pôr termo ao conflito no Oriente Médio.

Vejo outros campos possíveis para atuação conjunta em momento da vida internacional que sabemos de transição, de busca de paradigmas que não precisam surgir ex nihilo, mas podem representar a confirmação de tendências delineadas ao longo dos últimos anos. Penso, por exemplo, na causa da proteção internacional dos direitos humanos, que permite uma qualificação salutar do princípio da soberania e a reafirmação de preceito caro ao legado iluminista, que é a caracterização do homem como medida de todas as coisas.

Que saibamos cooperar, Rússia e Brasil, para que instrumentos como o Tribunal Penal Internacional logo entrem em operação, inibindo a barbárie, o genocídio, a abominável prática das limpezas étcnicas. Sem igual dramaticidade, mas relevante para a sobrevivência de milhões, sobretudo na África, é o imperativo de eximir o tratamento de epidemias da lógica crua do mercado.

Entre a sacralização do instituto de patentes e o socorro às vítimas de Aids, o Brasil não hesita. Defende a opção humanitária, que se vê merecedora de crescente receptividade na comunidade dos Estados. Se a obsessão pelo lucro não deve prevalecer sobre os reclames humanitários, tampouco se justifica que coloque em cheque o bem-estar de nossos povos.

Refiro-me ao problema ainda pendente da volatilidade dos fluxos financeiros, que tanto ônus trouxe a russos e brasileiros, a despeito da preocupação de nossos governos com a correção dos indicadores econômicos.
Tenho insistido e continuarei a fazê-lo sobre a necessidade de um monitoramento político dos movimentos de capital.

Na verdade, o objetivo é mais amplo e passo pelo reconhecimento de que a economia está globalizada, mas a política não. O mundo carece de mecanismos de governança que adeqüem as exigências do mercado às necessidades das comunidades nacionais. O sistema de Bretton Woods está obsoleto, se é que algum dia cumpriu os objetivos para os quais foi criado. O Banco Mundial precisa se habilitado a promover o desenvolvimento e o FMI dotado de meios para assegurar liquidez ao sistema financeiro internacional.

Cumpre valorizar o Grupo dos 20 como espaço de convergência entre o mundo desenvolvido e os países emergentes. Os russos da globalização, pela universalidade de seus efeitos, não podem ficar à mercê de instâncias restritas como o Grupo dos Sete ou o Grupo dos Oito. Também em nome da legitimidade, o sistema das Nações Unidas carece de atualização. O Conselho de Segurança deve ser ampliado e reformado para melhor refletir a realidade de nossos dias. Em muitas dessas propostas, talvez em todas, o Brasil e a Rússia podem caminhar juntos.

O importante, de todo modo, é que compreendamos a crise internacional como oportunidade de repensar os padrões de convivência entre os povos.
Não se trata de aderir à máxima nietzschiana de "aquilo que não me destrói fortalece-me".

Mas de reconhecer que uma ordem internacional mais solidária, se um dia emergia, será função de propostas, do debate de idéias. Vim à Rússia partilhar anseios, mas também colher ensinamentos de uma tradição talvez única no apreço às idéia como motor da história. Isaías Berlin nos lembra que foi aqui, nos idos de 1870, que se cunhou o termo intelligentsia, então empregado ao redor do mundo para designar aqueles ocupados em perseguir pela força da razão a liberdade e a justiça. A luta das idéias exige devoção, tenacidade, persistência, paixão, tudo aquilo que se costuma associar à alma russa.

Recebam, meus caros anfitriões, como povo e como cultura, o meu aplauso. Aplauso que não é somente meu, mas de todos os brasileiros, orgulhosos como somos de nossa alma, tropicalmente russa.
Muito obrigado."
 

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