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27/01/2002 - 14h15

José Carlos Dias vê retrocesso político na segurança

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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor de Brasil da Folha de S.Paulo

No momento em que defensores históricos dos direitos humanos passam a flertar com a prisão perpétua e governos tucanos, ainda atordoados diante da onda de insegurança, lançam às pressas pacotes de 'guerra' para tentar conter a violência, o advogado José Carlos Dias, 62, destoa de seus antigos companheiros na política.

Fora do governo desde abril de 2000, o ex-ministro da Justiça tem muito mais críticas do que elogios ao que está vendo. Diz que as novas medidas da dupla Alckmin/ FHC não darão conta de um problema complexo demais e sustenta que a figura do crime hediondo agrava muito, em vez de atenuar, a crise da segurança no país.

Dias qualifica a Lei Antitóxicos recentemente sancionada com vários vetos pelo presidente de 'ridícula' e vê o Brasil na contramão do mundo civilizado na matéria. Pede 'coragem' ao governo para que edite uma medida provisória proibindo o uso e comercialização de armas e, discordando do ministro Aloysio Nunes Ferreira, afirma que o crime organizado no Brasil 'está muito forte'.

A seguir, trechos da entrevista, concedida na última quinta-feira, no seu escritório em São Paulo, onde o criminalista ostenta uma estatueta com o busto risonho de Voltaire, o mais irônico e corrosivo filósofo do iluminismo francês:

Folha - O governo lançou mais um pacote de segurança, de novo de afogadilho e a reboque dos fatos. Dessa vez vai funcionar?

José Carlos Dias - É lamentável que precisem ocorrer casos espetaculares como esse [o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel', que vestiu de luto a todos, não só o PT, para que a gente acorde de maneira enfática para o problema. Isso não nos impede de reconhecer algumas coisas positivas. Eu sei o que é governo. É muito difícil romper a inércia daqueles que não querem abrir o cofre.

Folha - É uma metáfora ou uma crítica ao ministro Malan?

Dias - É muito difícil convencer o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento de que é preciso gastar com certas áreas. Na realidade, não deixa de ser um dinheiro mal empregado. Se você pode investir em casas populares, construir presídios entra meio pela goela abaixo. Mas tem que ser feito. Trabalhei ativamente no Plano Nacional de Segurança [lançado em 2000' e infelizmente esse plano, que deixei pronto, foi muito alterado. A verdade é que ele não deslanchou como devia.

Folha - Mas o novo plano de segurança dá conta do problema? Que pontos são fundamentais?

Dias - Não dá conta de forma nenhuma. O problema da segurança é muito complexo. Fico espantado como pessoas de bom nível, como o [José' Genoino [pré-candidato do PT ao governo de São Paulo' e o [Geraldo' Alckmin, chegam a flertar com a prisão perpétua. O Beccaria [Cesare Beccaria, criminalista italiano do século 18, autor de 'Dos Delitos e das Penas'' dizia que o que inibe o criminoso não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição.

Folha - O endurecimento das penas não é um fator de diminuição da violência?

Dias - Não é. E vou dar o seguinte exemplo: a lei que instituiu os crimes hediondos surgiu por causa dos sequestros. Exacerbou muito a pena e terminou com a possibilidade de progressão, mas os sequestros aumentaram. A instituição do crime hediondo só piorou o problema da violência. A pessoa que é condenada por um crime hediondo vai para o presídio sem perspectiva nenhuma. Ele tem que ganhar a rua na 'mão grande', e não pelo mérito do seu comportamento. Ele não tem nenhuma perspectiva de cidadania. Você pode ver: os líderes de rebeliões, de fugas, são pessoas condenadas por crimes hediondos. Ser condenado a 20, a 30 anos ou à prisão perpétua dá no mesmo.

Folha - O sr. é contra a existência do crime hediondo?

Dias - Sou contra que um crime seja classificado assim. Primeiro porque significa admitir que existe a categoria de crime adorável. É ridículo. É o juiz quem tem de dosar a pena de acordo com a maior ou menor intensidade do ato. O juiz perdeu essa elasticidade, essa prerrogativa de individualizar a pena de acordo com a intensidade do dolo. Existe no país uma democracia às avessas, em que todos os presos ficam na mesma situação. Temos um sistema penitenciário totalmente anacrônico. Você coloca na mesma vala um grande traficante ao lado de um 'aviãozinho', que poderia estar em liberdade vigiada, cumprindo penas alternativas, prestando serviços à comunidade.

Folha - O Estado tem estrutura para fazer isso? Não falta dinheiro?

Dias - Não. O que falta é coragem. Uma pena alternativa custa R$ 26 por pessoa para ser cumprida. Incluindo o trabalho da pessoa que vai acompanhar o cumprimento da pena. Contra R$ 650 que custa em média um preso.

Folha - O sr. citou criticamente o Genoino e o Alckmin, dois políticos que pertencem ao chamado campo progressista...

Dias - Pois é... Agora não sei mais em quem votar [risos]'.

Folha - Pessoas comprometidas com as políticas de direitos humanos estão encampando teses dos conservadores. Estamos diante de um retrocesso político?

Dias - Sim. São a direita furiosa e a esquerda furiosa usando o mesmo discurso.

Folha - E o centro?

Dias - Balançando e com medo. O grande problema é que as políticas públicas são ditadas pela opinião pública. Então, no momento em que você vai tomar uma decisão de governo, vai-se ver antes o que a pesquisa diz.

Folha - É assim que funciona no governo FHC?

Dias - É claro que é. Se eu falasse hoje que uma das soluções para resolver o problema penitenciário seria acabar com o crime hediondo, eu estaria no manicômio judiciário. Mas estou certo de que é. Eu me lembro que a Glória Perez [dramaturga, mãe da atriz Daniela Perez, assassinada em 92' fez declarações violentas contra mim -eu era ministro-porque eu defendi a abolição do crime hediondo.

Eu telefonei para ela e disse 'olha, escute, minha solidariedade à sua dor é ilimitada, eu sou pai e teria a mesma revolta. Eu quero apenas dizer o seguinte. É que eu entendo isso por causa disso, disso e disso. Eu teria prazer em recebê-la aqui em Brasília ou pediria que a senhora me recebesse na sua casa no Rio de Janeiro'. Aí ela respeitou a minha posição.

Folha - FHC acaba de sancionar com vetos a Lei Antitóxicos. O que o sr. pensa dela?

Dias - Essa lei, meio aprovada, meio vetada, é uma lei de drogas ridícula. Quando o mundo começa a se inclinar -não digo os Estados Unidos, que são outra coisa- e ver que a questão da droga deve ser encarada com inteligência, e que o uso da droga é um problema de saúde, de educação, e não um problema de polícia, o que é defendido no Brasil? Que o usuário seja submetido a tratamento. Então, nesse caso, vou ser submetido a tratamento porque bebo álcool? Não, só se eu for alcoólatra. Aí me submeto a tratamento, por vontade própria. E, depois, eu faço da minha vida, do meu corpo, o que eu quero, desde não atrapalhe os outros. Isso é um trabalho de convencimento. Não é pena que resolve.

Folha - O sr. defende a descriminação, total ou parcial, das drogas?

Dias - Acho que isso pode ser em degraus. O correto seria uma descriminação para o usuário em geral. Mesmo porque, aquele que é viciado em heroína tem de receber heroína, não pode entrar na síndrome de abstinência. Tem de ser assistido e orientado. Maconha, a mesma coisa. A maconha não faz mal nenhum. Tem seus inconvenientes. Menos que o cigarro, mas tem seus inconvenientes. Eu acho que tem de mostrar, de uma forma inteligente, que não se deve fumar. Veja com o cigarro. Foi feito um trabalho no sentido de desestimular o fumo e a verdade é que diminuiu. E não precisou criminalizar o cigarro. O que se bebia na época da Lei Seca nos Estados Unidos [proibição da comercialização de bebidas alcóolicas, que vigorou no país nos anos 20' era uma loucura, que incentivou inclusive a máfia.

Folha - Essa lei de drogas foi elaborada no âmbito do general Cardoso na Senad [Secretaria Nacional Antidrogas'?

Dias - Houve uma parte que saiu de lá, depois foi ao Congresso e sofreu mil alterações. Esse assunto deveria estar no Ministério da Justiça, integrado com o Ministério da Saúde e com o da Educação. E deveria ser gerido por uma figura que fosse um médico, um comunicador. Eu imagino o [médico' Drauzio Varella dirigindo um órgão como a Senad e fazendo um belo trabalho contra a droga.

Folha - O sr. chegou a sugerir isso quando estava no governo?

Dias - Cheguei.

Folha - Como o sr. vê a proposta de unificação das polícias?

Dias - Sou plenamente favorável. Mas não é fácil conseguir isso. As polícias podem até viver um processo de namoro à moda antiga, mas ir para a cama é complicado. A Polícia Militar tem uma influência impressionante. Alcança espaços que não lhe pertencem. Eu acredito muito mais numa guarda civil, reservando a PM para as funções de choque. A Guarda Municipal também deveria ter poder de polícia. Há projeto sobre isso parado no Congresso. O lobby da PM é pesado.

Folha - Mas a corrupção na Polícia Civil também é pesada. Confere?

Dias - Confere.

Folha - E como lidar com isso?

Dias - Firmeza, pressão, estímulo ao bom policial. Isso não se
resolve da noite para o dia.

Folha - Esse é um dos trunfos da PM. Ela seria menos menos suscetível à corrupção, ou não?

Dias - Mas o Poder Judiciário de hoje não é o mesmo de quando eu comecei a advogar, há quase 40 anos. Nem por isso você vai acabar com o Poder Judiciário. Você tem é de lutar para que os maus juízes sejam punidos. Então, não é porque a Polícia Civil tem problemas que você vai acabar com ela e passar suas atribuições para o Ministério Público. Se é verdade que o delegado decaiu moralmente, vamos analisar as razões. E se o promotor tem o nível moral superior -pode ser que haja um número menor de promotores corruptos, acredito que sim-, isso não significa que eles seriam absolutamente inexpugnáveis se fossem tocar os inquéritos policiais. O convívio com o crime é uma coisa terrível.

Policial tem que ser bem pago. Nós temos excelentes e dignos policiais. E isso é uma coisa que tem que ser valorizada. Na PM existe também corrupção. Mas por que não existe tanto? Porque o contato deles com o crime é no confronto. Por isso eles são mais violentos. Mas existem ótimos oficiais. tenho muito respeito pelo comandante da PM [Rui César Melo, comandante-geral da PM paulista'.

Folha - Qual sua posição sobre a proibição da venda de armas?

Dias - O Arruda [José Roberto Arruda, senador que renunciou ao mandato após o escândalo da violação do painel' foi chamado pelo presidente para discutir a lei que proíbe a venda de armas. Não sei para que é preciso lei se se vulgarizou tanto a medida provisória. Por que é que não editam uma medida provisória? O assunto não é urgente? Medo, talvez. Precisamos ter coragem para certas coisas. A arma só vale para quem sabe usar. Ou bandido ou polícia.

Folha - O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, disse em entrevista à Folha que o problema do Brasil não é tanto o crime organizado, mas o crime desorganizado, e refutou comparações com a situação da Colômbia.

Dias - Conheço bem o Aloysio. Eu o defendi na Justiça Militar. É um sujeito inteligente, mas não concordo. O crime organizado no Brasil está cada vez mais forte. Eu até pensava como ele até ter contato -eu e a Polícia Federal- com os Estados. É indiscutível, você vai percebendo que o crime organizado vai permeando o Estado, o Poder Judiciário, o Legislativo, o Executivo. E aí a coisa tem um poder de metástase.

Folha - O sr. chegou a ver isso, quando ministro?

Dias - Não tenha dúvida. No Amapá, o [João' Capiberibe [governador do Estado, do PSB' vive um processo de solidão terrível. Ele chegava a ligar para mim de noite, desabafando. A solidão dele diante do que há no Estado é espantosa. A mesma coisa no Acre. O governador do Acre [Jorge Viana, do PT' é um homem extraordinário. Eu cheguei a pegar um avião, enchi de armas e fui com o diretor da Polícia Federal e o procurador-geral da República entregar a ele. Porque a PM de lá não tinha armas.

Folha - O sr. foi secretário da Justiça no governo Montoro (1983-86). Uma das marcas desse governo foi a defesa de uma política efetiva de direitos humanos. Olhando o que veio depois, parece que involuímos um bocado, não?

Dias - Quando o Montoro saiu do governo, escrevi, acho que até na Folha, que se teria a noção da sua grandeza à medida que o tempo fosse passando. Quando ele estava no cargo, recebia muitas críticas. Criticou-se muito a sua 'falta de autoridade' porque derrubaram as grades do Palácio. Quem é que derrubou? Foram os professores. Lá estava a Erundina [Luiza Erundina, deputada federal pelo PSB', estava uma porção de gente. Montoro não permitiu que a polícia batesse. Uma coisa extraordinária. Um exemplo de tolerância. E o presidente era o Figueiredo [João Baptista Figueiredo, último presidente do regime militar'. Montoro era um humanista, um homem de cultura filosófica. Tenho muita saudade, sim.
 

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