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22/04/2002 - 08h23

Sem-terra deixa hoje quartel de Arafat em Ramallah

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PAULO DANIEL FARAH
da Folha de S.Paulo

O agricultor gaúcho Mário Lill, 36, representante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que está no complexo presidencial onde o líder palestino Iasser Arafat se encontra confinado, em Ramallah, acredita que vai conseguir deixar hoje o local com mais cinco estrangeiros.

Ontem, mais 12 pacifistas entraram no complexo, incluindo dois americanos, dois britânicos, um dinamarquês e um norueguês. A maioria pertence ao Grupo de Solidariedade ao Povo Palestino. Houve muita confusão, segundo Lill, que conta que tomou dois banhos desde o final de março, quando entrou no local, e que, por isso mesmo, é a primeira coisa que pretende fazer ao sair.

Folha - Entraram mais 12 estrangeiros no complexo hoje [ontem". O que eles fazem e de onde vêm?
Mário Lill -
São pacifistas. Dois americanos, dois britânicos, um dinamarquês, um norueguês e outros estrangeiros. A maior parte é do Grupo de Solidariedade ao Povo Palestino.

Folha - Houve confusão?
Lill -
Sim, muita confusão. Eram umas 40 pessoas. Estavam divididas em dois grupos: um entrou pelo portão dos fundos, e outro, pelo da frente. Chegaram ao mesmo tempo e surpreenderam o Exército israelense. Até o Exército se dar conta, um grupo conseguiu entrar. O Exército disparou, houve muitos tiros, bombas de efeito moral e disparos com as metralhadoras no chão, mas não chegou a atingir ninguém. Os mais corajosos conseguiram passar.

Folha - Você tem alguma previsão de quando vai sair?
Lill -
Pretendemos sair amanhã [hoje" da mesma forma que nós entramos. Vamos levantar a mão, tranquilos, e vamos embora. Eu conversei com o embaixador brasileiro e ele disse que não pode fazer nada, que fará o máximo para chegar perto, mas ele não tem força. É uma ladainha que cansa.

Ele acredita que, no máximo, vai poder me ver no aeroporto. Ter embaixador e não ter não faz diferença.

Folha - Acha que vai ser detido?
Lill -
Sim, acho que vão nos pegar e interrogar. Eu não tenho o que falar para eles, não entendo nem a língua deles. Se puserem um tradutor, eu não tenho o que falar. A única coisa é que estou aqui em missão de paz. A única saída para os dois lados é a paz. Mas nós vamos ver se nós conseguimos driblá-los. Estou aqui a convite do povo palestino, não fizemos crime algum.

Folha - Quantas pessoas devem sair? E qual a nacionalidade delas?
Lill -
Além de mim, há um basco e quatro franceses.

Folha - Por que o grupo vai sair?
Lill -
Para fortalecer o trabalho pela causa palestina lá fora.

Folha - Arafat conversou com vocês hoje [ontem"?
Lill -
Conversou com o grupo que chegou. Agradeceu a presença e explicou a situação. Falou muito da incomunicabilidade com o seu povo. Faz praticamente seis meses que ele está preso com o seu povo, sem viajar [Arafat está em Ramallah desde o início de dezembro]. E ele era alguém que viajava muito.

Folha - O complexo presidencial pode ser atacado?
Lill -
Após a vinda de Powell [Colin Powell, secretário de Estado dos EUA], os EUA exigiram que Israel não nos ataque. Mas Arafat disse que não tem garantia de que Sharon [Ariel Sharon, premiê de Israel] não vá fazer isso.

Folha - Houve alguma mudança na rotina quando Powell conversou com Arafat em Ramallah?
Lill -
Os israelenses fizeram uma faxina na frente do quartel-general porque eles destruíram tudo, os carros dos civis e outras coisas. E eles jogaram terra por cima. O complexo tem vários prédios, e nós estamos em um só. No resto estão os israelenses, que forçaram, com armas, um pessoal do saneamento a ligar a água e a desentupir os esgotos apenas dos prédios em que eles estão. Pela força das armas, eles foram forçados a fazer isso.

Folha - Qual a situação atual? Há água e luz?
Lill -
Volta e meia eles cortam a luz, mas de qualquer forma a gente tem de ficar no escuro por uma questão de segurança. Os soldados estão sempre próximos. Tem um buraquinho onde a gente dá uma espiada, mas é uma situação perigosa. E falta água.

Folha - Você está sem banho?
Lill -
Depois de uma longa fila, tomei dois banhos. E falta roupa.

Folha - Você está com a mesma roupa de quando chegou?
Lill -
Troquei a camisa e a cueca. Os palestinos conseguiram uma cueca.

Folha - Quantos banheiros vocês têm à disposição?
Lill -
Vários, mas só dois deles têm água neste momento.

Folha - São quantas pessoas?
Lill -
Centenas.

Folha - O que você vê daí?
Lill -
Tanques, muitos. Os soldados estão dentro dos prédios, às vezes a gente os vê. Tem horas em que não vemos ninguém, só tanques. Os soldados ficam apontando para as janelas como se fossem disparar. Nos primeiros dias, tínhamos boa comunicação. Agora bloqueiam as ligações.

Folha - Onde você dorme?
Lill -
Nós usamos um colchão de solteiro, onde dormem três. Ou usamos tapetes.

Folha - Consegue andar dentro do prédio?
Lill -
A gente circula, mas não muito porque tem o pessoal de Israel, e a gente evita.

Folha - E a comida?
Lill -
A alimentação básica é um pão, com alguma pasta ou mistura. Às vezes tem pepino e tomate. Hoje [ontem" tinha arroz e feijão.

Folha - Tem acesso à cozinha?
Lill -
Não há cozinha. O Exército de Israel a destruiu. O cozinheiro morreu e ficou mais de uma semana lá, até Powell chegar. Tem um fogãozinho no prédio com quatro bocas para fazer comida para centenas. A mistura é pouca.

Folha - O que faz no tempo livre?
Lill -
Escrevo, caminho, mas não dá para fazer muito exercício físico porque senão a gente sua e ninguém aguenta ficar perto. Não tenho muito contato com os palestinos devido à língua. Converso com o pessoal que fala espanhol.

Folha - O que você vai guardar da experiência?
Lill -
Muitas coisas, mas tem de ter paciência. Nós, do MST, temos muita experiência de convívio coletivo, mas é um estilo pobre. O maior problema é a comunicação. Os árabes têm um convívio muito fraterno. Os soldados levam um fuzil em uma mão e dão a outra a um amigo, como se eles fossem namorados. Ou carregam um terço. O que me impressiona é o jeito simples. Às vezes, à noite, a gente dorme sem manta, passa um soldado e nos cobre, como minha mãe fazia.

Folha - Qual sua impressão de Arafat?
Lill -
Ele parece nunca perder o otimismo. Para mim, é uma surpresa. Tudo parecia andar ao contrário, mas ele permanece otimista. Mas, logo depois da reunião com o Powell, me pareceu nervoso. À noite já estava melhor.

Folha - Como vocês acompanham as notícias?
Lill -
Temos a CNN, a televisão francesa, uma suíça e a Al Jazeera, que é difícil de entender, mas é mais pelas imagens. Sempre tem alguém para traduzir. Acompanhamos o que se passa em Jenin e Belém diariamente. Todo dia tem gente que perde um irmão, um amigo, um parente. Isso já é diário. Temos contato direto com Jenin, inclusive com pessoas que estavam aqui nos primeiros dias. Foi um massacre [o governo israelense nega". Estou seguro disso. O pessoal relatou situações em que o Exército israelense, não satisfeito em matar, colocou os corpos para os tanques passarem por cima, esmagando. Isso é um extremismo. Há um piloto de helicóptero que se negou a bombardear um apartamento que teria cinco pessoas dentro. Ele se negou, recebeu ordem duas vezes, e esse piloto está desaparecido.

Folha - O que resolveria esse impasse atual, na sua opinião?
Lill -
Tem de vir uma força internacional de proteção. A questão fundamental é o território. O povo palestino se defende com as armas que têm. Por isso que enfrentam um tanque com um fuzil. Eles utilizam as mais variadas formas que conhecemos, homens-bomba, os atentados.

Folha - O que você acha dos atentados suicidas?
Lill -
Eles nos dizem que não têm armas para enfrentar o Exército israelense. "Estamos nos defendendo da invasão, essa é a única arma. Colocar pessoas enfrentando tanques é tão suicida quanto o homem-bomba. Não nos agrada muito fazer, mas...", dizem. Essa é uma análise fria. Não é a minha opinião. Acredito, e por isso estou aqui, que tem de ser pela paz, pela negociação. Estamos aqui para evitar que haja um ataque maior. A minha presença se deve a isto. Para evitar a morte.

Folha - Há extremistas religiosos aí dentro?
Lill -
Não. Tem o Fatah, que é o grupo de Arafat. Eles também fazem luta armada, mas não são esses extremistas muçulmanos que pregam na Palestina um Estado religioso, islâmico. Arafat defende um Estado palestino, mas laico. O Prêmio Nobel da Paz que ele recebeu é mais do que justo.

Folha - O que você pretende fazer quando sair?
Lill -
A primeira coisa é tomar um bom banho e trocar de roupa. Quero ver minha família, meu filho, que está chamando pelo pai, minha esposa, meu povo, meus companheiros sem-terra e descansar tranquilo. Preciso de uns dias para respirar ar puro, poder colocar as idéias em ordem para fazer uma melhor análise de todo o processo aqui.

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