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27/10/2002 - 07h22

Lula pode tender ao populismo à Chávez, diz estudioso alemão

da Folha de S.Paulo, em Paris

Se Lula for eleito e não puder levar adiante as mudanças que prometeu aos seus eleitores, duas coisas podem ocorrer, segundo o brasilianista alemão Jens Hentschke: a democracia pode deixar de ser reconhecida pela população como um valor a ser defendido e Lula pode se inclinar ao neopopulismo de Hugo Chávez.

Hentschke avalia que, se uma vitória de Lula for aceita sem traumas pelas elites e ele puder cumprir suas metas, a democracia se terá consolidado no Brasil. "Enquanto a democracia não afeta as "classes conservadoras", é fácil aceitar as reformas sociais. No entanto será que as elites vão tolerar as reformas quando estas estiverem ligadas ao menos a um certo grau de redistribuição [de renda]? Em 1963/64 não ocorreu isso", diz Hentschke.

Para o brasilianista, o sucesso de Lula depende também de ele convencer a ala esquerda de seu partido de que "a solução para os problemas brasileiros não está na libertação, mas na liberdade e no liberalismo".
Hentschke, 44, é professor da cadeira de estudos brasileiros e portugueses na Universidade de Newcastle (Inglaterra) e de ciência política na Universidade de Heidelberg (Alemanha).

Dedica-se sobretudo ao estudo da Era Vargas e do populismo na América Latina. Publicou, entre outros, "Estado Novo - Gênese e Consolidação da Ditadura Brasileira de 1937" (ed. VfE), um volume de 725 páginas, ainda não traduzido no Brasil. Está terminando de escrever "Reconstruindo a Nação - A Política de Educação do Governo Vargas".

Folha - Quais as implicações para o Brasil e para a América Latina de uma vitória de Lula nas eleições?
Jens Hentschke
- Lula seria o primeiro presidente do Brasil e um dos poucos da América Latina que não terão saído das elites (e não é um militar). Seu partido, o PT, não esteve envolvido em nenhum escândalo maior de corrupção e poderia, então, representar uma nova ética na política. Lula tem prometido moderação, e distanciou-se do neopopulismo -que se tornou uma força superior na América Latina na última década. Contudo não há dúvida de que Lula representa a esquerda. Se, depois do período conservador de Sarney e de Collor e da coalizão de centro-direita de Fernando Henrique Cardoso, a vitória de Lula for reconhecida e o novo presidente puder cumprir suas metas, isso significará a consolidação da democracia no Brasil.

Folha - Quais as principais dificuldades que Lula enfrentaria?
Hentschke
- O Brasil permanece uma das sociedades mais desiguais dos pontos de vista social e étnico em todo o mundo; a classe média do país é relativamente pequena. Um governo Lula precisa voltar-se para o que João Goulart chamava de "reformas estruturais" ou "básicas". Seu próprio partido e a maioria daqueles que sustentaram sua campanha vão recordar a Lula suas primeiras promessas de mudar fundamentalmente a sociedade. Será que ele convencerá o eleitorado de que a política é o possível e de que não pode produzir milagres? Será, por outro lado, que a ala esquerda do PT aceitará que a solução para os problemas brasileiros não está na libertação, mas na liberdade e no liberalismo? Será, ainda, que as elites aceitarão a necessidade de uma reforma social? Enquanto a democracia não afeta as "classes conservadoras", é fácil aceitar essas reformas. No entanto será que as elites vão tolerar as reformas quando elas estiverem ligadas ao menos a um certo grau de redistribuição? Em 1963/64, isso não ocorreu. Se Lula não puder levar adiante as mudanças prometidas à maioria da população, a democracia pode deixar de ser reconhecida como um valor em si mesmo, algo que valha a pena ser defendido. O próprio Lula e seus sucessores podem então seguir o mesmo tipo de neopopulismo dos presidentes do Peru e da Venezuela. Devo dizer, porém, que o Brasil está agora socialmente tão desigual e polarizado politicamente que mesmo membros da classe política conservadora sentem que Lula pode ser o único político capaz de criar pontes entre o trabalho, a classe média e as grandes empresas.

Folha - O sr. acredita que ele poderia colocar em prática todo o seu ambicioso programa social hoje?
Hentschke
- Não, certamente não, e isso é parte do problema. Até nos países industriais mais desenvolvidos a mudança do poder de um partido para outro não leva a uma mudança radical nas políticas anteriores. A parte do Orçamento que pode ser realocada quando existem compromissos a serem honrados é muito pequena. Os sistemas políticos construíram barreiras que fazem com que as decisões passem por um longo e complicado processo. Isso se aplica tanto ao liberalismo americano quanto ao neocorporativismo do Estado de bem-estar social dos países europeus. O mesmo é válido para o Brasil, onde um presidente voltado para reformas sempre enfrentará um Congresso muito mais conservador e obstrutivo, que prefere defender o status quo. Ainda levará muito tempo até que o Brasil tenha uma sociedade menos hierarquizada e mais igualitária. Tudo o que Lula pode fazer, e já será muito, é preparar um novo horizonte, por exemplo, adotando uma reforma tributária ou investindo mais em serviços sociais. Um de seus maiores desafios, caso seja eleito, será levar a cabo algum tipo de reforma agrária.

Folha - Na sua opinião, por que o mercado internacional teme tanto um governo presidido por Lula?
Hentschke
- Primeiro, há o passado de Lula como figura revolucionária no período da abertura. Durante sua última campanha presidencial, Lula vestiu camisetas com slogans que alimentaram o medo de que ele pudesse fazer um experimento socialista no Brasil. Há ainda a estrela vermelha, o logotipo do partido, que recorda bastante regimes de estilo soviético. É verdade que líderes políticos internacionais e instituições financeiras têm observado o percurso de Lula rumo ao centro com certa fascinação. No entanto, a incerteza sobre o desconhecido permanece. Lula quer continuar as negociações de Cardoso com os EUA e outros países latino-americanos para uma zona de livre comércio das Américas, mas ele inclui Cuba em seus planos e foca na consolidação do Mercosul e em sua expansão pela região andina. Para Washington, isso indica que Lula está de fato concentrado num "latino-americanismo" sem -e potencialmente contra- os Estados Unidos, em oposição ao pan-americanismo defendido por Washington. Alguns pensam que o Brasil vai estabelecer relações firmes com Hugo Chávez, presidente da Venezuela, e com Fidel Castro depois de uma vitória de Lula. Esse medo é certamente exagerado. As incertezas explicam o nervosismo dos mercados internacionais.

Veja também o especial Eleições 2002
 

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