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23/11/2002 - 03h25

Bush terá que dar prioridade ao Brasil, diz americana

SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo, em Nova York

Vai custar até que George W. Bush entenda o que aconteceu no Brasil com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas o fato novo vai ser bom para que o presidente norte-americano perceba que o país é uma nação grande, importante, que não pode estar no final de sua lista de prioridades.

A opinião radical é de uma radical de muitas opiniões e uma das maiores estudiosas do Partido dos Trabalhadores nos EUA. A cientista política Margaret Keck é autora do único livro sobre o PT escrito em inglês e lançado no país, "The Workers" Party and Democratization in Brazil".
Professora da conceituada Universidade Johns Hopkins, em Nova York, Keck falou à Folha sobre a eleição de Lula e suas consequências.

De quebra, declarou que o petista não é o primeiro ex-sindicalista a virar presidente de um país importante.

Folha - Qual o lugar que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva vai ocupar na história?
Margaret Keck
- A eleição tem um significado enorme para o Brasil. O PT e Lula eram vistos no começo de sua trajetória como algo quase antinatural no cenário político brasileiro de então.
A idéia de que um operário poderia ser político foi recebida como uma manifestação folclórica, e algumas das frases ditas no início dos anos 80 soariam muito estranhas hoje em dia.
Não é só o fato de o Lula e de o PT terem ganho um tamanho e uma importância grandes na sociedade mas também o fato de o Brasil ter mudado muito. É uma sociedade mais aberta, mais democrática.

Folha - Mas o PT mudou também, não?
Keck
- O PT obviamente mudou. Ao longo desse tempo, o partido teve uma experiência política muito grande, tanto no aspecto eleitoral e de ter representação em instituições políticas e legislativas quanto no governo.
É sobretudo a experiência nos governos municipais que amadureceu o partido, que cometeu muitos erros, aprendeu com eles e mudou o estilo a partir disso.
Isso não quer dizer que mudou totalmente, não foi de um partido militante para um partido governista, não é isso, mas a proposta política do PT virou muito mais complexa, pois o público com quem ele conversa também virou um público mais complexo.

Folha - Como estudiosa do assunto, a sra. confirma que Lula é mesmo o primeiro ex-sindicalista do mundo a chegar ao poder de um país importante?
Keck
- No Brasil, com certeza, é um caso inédito. No resto do mundo? Bem, aqui nos EUA nós tivemos um ator, e veja que a formação dos atores não é muito mais cosmopolita que a formação de um sindicalista. [Risos]
Além disso, em algum momento de sua carreira Ronald Reagan foi presidente do sindicato de atores de Hollywood, se não me engano. Ou seja, os EUA tiveram um ex-sindicalista na Presidência antes do Brasil. Essa comparação faria meus amigos do PT quererem me matar...

Folha - Qual o reflexo da eleição de Lula para o continente?
Keck
- Para a América Latina o PT representa uma esquerda não-populista, que é uma alternativa que tem pouco paralelo na história do continente.
Ou seja, mostra que há uma opção a alguém como o Hugo Chávez, na Venezuela, por exemplo, que é uma figura que se apresentou como um salvador, montado num cavalo branco e tudo mais, mas é um líder populista tradicional.
Já a trajetória do Lula e do PT é diferente. Talvez inaugure um período de discussão de propostas alternativas em relação ao caminho do continente.
O Brasil é capaz de conduzir uma discussão bem mais rica do papel dos latino-americanos no processo de globalização. Não tenho certeza de que essa discussão vá acabar numa nova proposta nem consensual nem viável, mas pelo menos abre o caminho.

Folha - A sra. acha que esta eleição marca uma nova virada do continente para a esquerda, a exemplo do que aconteceu em alguns países nos anos 60 e 70? Se sim e se a história for mesmo pendular, então essa virada não seria acompanhada de uma nova reação da direita, principalmente a direita militar?
Keck - Não. Com certeza a vitória do Lula e do PT vai ser uma inspiração para a esquerda de outros países da região, mas o Lula não chegou à Presidência de um dia para o outro, não foi algo meteórico, é um processo que foi acumulando forças durante muito tempo. E vários aspectos contribuíram para que dessa vez ele ganhasse, não foi só pelo processo de acumular forças.
Não acho que a trajetória que ele teve no Brasil seja tão facilmente copiável.

Folha - O que a sra. achou da frase de Hugo Chávez, de que ele, Lula e Fidel Castro, em Cuba, fariam o "eixo do bem"?
Keck
- Ele estava respondendo a um artigo do jornal "The Miami Herald", em que se falava que a América Latina agora poderia também ter seu "eixo do mal". Traduzindo, significa apenas que dentro da América Latina há uma voz mais crítica em relação à maneira que o processo de globalização tem se conduzido.
O Brasil é um país com interesses muito maiores do que o interesse de Lula em ter relações privilegiadas com a Venezuela ou com Cuba.
Na política externa do Brasil, apesar de esses países serem importantes como aliados da esquerda, não são centrais.
Pegue a relação com Cuba, por exemplo. É importante, pois certos setores da direita norte-americana olham a América Latina mas só vêem Cuba. Mas esses óculos são muito estreitos. E o presidente Bush não vai ver o Brasil através desses óculos, e o Lula também não vai ver o mundo através do óculos que só vêem Cuba.

Folha - Em que medida muda a relação Brasil-EUA? O presidente Bush está preparado para o presidente Lula?
Keck
- Seria bom Bush reconhecer que a eleição de Lula representa uma mudança de clima no Brasil que vai exigir dele um pouco mais de atenção em relação ao país do que ele tem prestado até agora. Talvez sirva como alerta para ele, alerta de que o Brasil é uma nação grande, importante, que não pode estar no finalzinho da lista de prioridades.
Mas vai custar até ele entender o que está acontecendo... E, apesar de algumas declarações infelizes, como a recente supostamente feita pelo secretário do Tesouro, Paul O'Neill fez, eles não reagiram tão mal assim à vitória petista.

Folha - A sra vê alguma relação entre os movimentos antiglobalização que eclodiram no mundo no fim dos anos 90 e a eleição de Lula?
Keck
- Não, mas creio que os dois fatos vêm de uma mesma causa, há fatores em comum que influenciam os dois. Ambos refletem uma insatisfação crescente com o fato de que os frutos da suposta expansão econômica global não estão chegando. Ou estão chegando para cada vez menos pessoas, mas não para as grandes maiorias, nem nos países ricos, nem nos países pobres.

Folha - Wall Street vai dar chance para Lula provar que ele não é o radical que o mercado internacional pensa que ele é?
Keck
- Se eu tivesse uma bola de cristal sobre Wall Street, seria muito mais rica. [Risos] É difícil saber, mas não acho provável mesmo que o mercado vá dar muita abertura ao governo. Na minha opinião eles não vão fazer absolutamente nada para ajudar.
Agora, também não é do interesse de Wall Street que o Brasil quebre. Então, vai precisar de muita agilidade da parte do governo brasileiro, tanto do atual quanto do de transição. Vai ser preciso tentar convencer os investidores a se acalmar.

Veja também o especial Governo Lula
 

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