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24/11/2002 - 13h11

D. Ivo vê "tempos difíceis" para ação da CNBB

MARCELO BERABA
Diretor da Sucursal da Folha de S.Paulo, no Rio

Era o início da década de 70. Os militares, no governo desde 1964, esmagavam qualquer tentativa de organização oposicionista e a Igreja Católica era uma das poucas vozes resistentes.

No Palácio do Planalto, frente a frente, dois notáveis se enfrentam, ambos gaúchos. De um lado, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), expoente da linha dura do Exército. Do outro, o bispo progressista José Ivo Lorscheiter, secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Médici o repreende pelas críticas feitas ao regime com uma ameaça infeliz: se a igreja não se moderar, os militares se sentirão à vontade para dar aula de religião. D. Ivo responde no mesmo tom:

"Nós não criticamos vocês por aspectos técnicos, mas por aspectos éticos. Vocês fazem coisas moralmente injustas". Em seguida, incentiva Médici a seguir com o plano: "O senhor tem uma família, tem netos, será uma coisa boa começar a dar catequese". D.Ivo recorda o desfecho da conversa: "Aí acabou, ele não sabia mais o que dizer". E a igreja seguiu com as denúncias de tortura, perseguições políticas, censura prévia e injustiças sociais.

"As duas primeiras promessas dos militares eram até boas. Estavam fazendo uma revolução contra a subversão e a corrupção, coisa que todos nós queríamos. Mas logo depois vieram os exageros e começaram as prisões. Tivemos que ser contra. Qualquer um era chamado de subversivo", diz.

Às vésperas de completar 75 anos de vida (no próximo dia 7) e 50 de sacerdócio (no dia 20), o ex-secretário-geral e ex-presidente da CNBB durante 16 anos (1971 a 1986) embarcou no dia 18 para Roma, onde entrega pessoalmente ao papa João Paulo 2º seu pedido de aposentadoria, uma exigência das leis da igreja.

Nascido em uma família simples e religiosa (é primo do cardeal Aloísio Lorscheider, tem um irmão padre, no Japão, e várias primas freiras), criado em uma colônia alemã no Rio Grande do Sul, d. Ivo foi protagonista de um tempo histórico em que a igreja e o governo seguiram sempre sinais inversos.

Último bispo brasileiro nomeado por Paulo 6º ainda com o Concílio Vaticano 2º em andamento, em 1965, ele mal teve tempo de respirar o vento liberalizante que vinha de Roma. A situação interna o colocou à frente da CNBB no período mais obscuro do regime militar.

E quando o Estado brasileiro começou a se distender, Roma, agora com João Paulo 2º, voltou a impor a disciplina que mudaria a face essencialmente progressista da igreja do Brasil dos anos 70.

Passados 30 anos, o que o regime militar não conseguiu pela força, o diabete impôs sem revide: d. Ivo é hoje um homem lento, com dificuldades para caminhar, e parece cansado.

Quando voltar do Vaticano, no final do mês, ele inicia as comemorações do cinquentenário de sacerdócio. Serão vários dias de festas com a família e com os católicos. Enquanto aguarda a decisão do papa sobre a aposentadoria, permanecerá à frente da diocese de Santa Maria, no coração do Rio Grande do Sul.

Ele recebeu a Folha numa tarde de segunda-feira na residência episcopal, uma casa com a mesma idade do hóspede, úmida e desgastada, a exigir cuidados urgentes. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Folha - O senhor é ordenado padre em Roma, em 1952, o ano em que d. Hélder Câmara funda a CNBB. O início da década de 50 já apontava para as mudanças que a Igreja Católica iria experimentar a partir de 1962, com o Concílio Vaticano 2º?

D. Ivo - Nós tínhamos a ansiedade de compreender a doutrina social da igreja. Nós, brasileiros, mais ainda, porque era um país emergente e nós não queríamos ficar atrás dos desafios que daqui se irradiavam. O estudo em Roma tinha uma vantagem muito grande. Nós morávamos num grande colégio, o Pio Brasileiro, e conhecíamos melhor o Brasil estando lá do que morando aqui porque por lá passavam grandes personalidades brasileiras, como Alceu Amoroso Lima e d. Hélder Câmara, e havia um ambiente intelectual e de debate. Havia também tensões internas, o que era bom. O mundo não era fechado e nós conhecíamos bastante bem o Brasil.

Folha - Quando surge o Concílio Vaticano 2º (1962), os senhores já estavam preparados?.

D. Ivo - Sim, nós tínhamos nos preparado bastante bem, sem saber para onde isso ia, é claro. Renovação e fidelidade, isso foi sempre muito presente.

Folha - E como é recebido o anúncio do Concílio?

D. Ivo - Pio 12 era um homem hierático. Quando entrou João 23, viu-se que era uma figura diferente, popular, que ia dar um novo rumo para a Igreja. E foi o que fez. Era um homem já idoso, de 78 anos, e nós nos perguntávamos: o que será que vai fazer? Pensávamos que, depois de Pio 12, tinha de ser um papa de transição. E, no fim, foi uma transição que sacudiu a igreja.

Folha - O senhor se forma num ambiente de expectativas de mudanças, mas vai trabalhar como bispo auxiliar de uma das lideranças mais tradicionalistas daquele momento, o cardeal d. Vicente Scherer. Os senhores nunca entraram em conflito?

D. Ivo - Ele dizia, você é novo, nós não vamos pensar sempre do mesmo jeito, mas você vai ter aqui toda a liberdade de ação. E recomendava: "Você só cuida de não se meter demais em políticas partidárias, isso não é da igreja".

Um dia ele me pediu para que passasse em Porto Alegre e me disse: "Olha, eu acho que você deveria moderar um pouco as suas críticas ao governo militar. Não estou de acordo com os exageros [dos militares", mas por que vamos criticar?" Aí eu disse: "Olha, senhor arcebispo, eu estou lá porque os bispos me elegeram. Eu não posso ficar muito trancado". Ele me disse: "É que eles se incomodam". Se incomodam, mas o que eu vou fazer?

Um dia nos encontramos em Brasília e ele me disse: "Eu tenho de visitar o presidente Médici, você me acompanharia?" O presidente era gaúcho, nós só tínhamos a ganhar dando uma palavrinha de saudação. E fomos. O Médici era um homem difícil e não sabia conversar, coitado. Uma hora o Médici disse: "Escuta, me dá licença, já que o senhor trouxe d. Ivo, secretário da CNBB, eu vou fazer agora uma reclamação". E se dirigiu para mim: "D. Ivo, eu vou pedir a vocês da CNBB que moderem as críticas ao governo. Por que se vocês não moderarem, nós vamos ter de mudar de posição. Eu, presidente, vou começar a dar catequese até que vocês mudem de posição e nos deixem fazer a nossa parte".

Aí eu disse para d. Vicente: "O senhor me dá licença, já que ele está falando para mim eu vou dar a minha resposta. Senhor presidente, nós não vamos mudar a nossa posição. Nós não criticamos vocês por aspectos técnicos, mas por aspectos éticos. Vocês fazem coisas moralmente injustas. Agora, se por isso o senhor começar a dar catequese, nós vamos ficar muito contentes, porque este não é um trabalho só dos bispos, é dos leigos. O senhor tem uma família, tem netos, será uma coisa boa começar a dar catequese. Nós não vamos ficar bravos, vamos até lhe aplaudir". Aí acabou, ele não sabia mais o que dizer.

Folha - Aqueles foram períodos mais difíceis?

D. Ivo - Eu sempre digo para os dirigentes atuais da CNBB: aqueles foram tempos mais fáceis do que agora. Por quê? Porque estavam claros os exageros da ditadura e nós sabíamos que com aquilo não podíamos compactuar. E hoje? Todo mundo fala de democracia, de direitos humanos, mas o povo entende menos o que exigir da CNBB.

Folha - A partir de 70, quando a relação entre o regime e a Igreja chegou a um ponto de ruptura, bispos e militares do governo se reúnem secretamente para dialogar. Foi o período da Comissão Bipartite. Muita gente na igreja achava que aqueles encontros eram inúteis, porque o regime continuava a perseguir a oposição. O senhor também tinha esta avaliação?

D. Ivo - Poderia ficar decepcionado quem achasse que nós íamos converter uns aos outros, mas nós não queríamos isso. Nós não pretendíamos converter os militares nem eles pretendiam nos converter. Mas as reuniões eram úteis porque ali se traziam casos concretos, pedidos de mudanças em casos práticos, informações. Foi bom.

Havia sempre uma certa tensão, mas o clima sempre foi muito cordial. Eu tinha aprendido uma frase com um bispo metodista do Brasil: um ministro do evangelho não pede licença nem desculpas nem tem medo. Não pede licença ao governo nem pede desculpas, se o governo não gostar. E nem pode ter medo.

Nós sabíamos que, à luz do Concílio, nós tínhamos que ter coragem profética, ou seja: não calar quando deve ser falado, não deixar de tomar iniciativas quando elas devem ser tomadas.

Folha - O senhor alguma vez sentiu falta de apoio do papa?

D. Ivo - Nunca. João Paulo 2º era ainda novo, forte, e nos recebeu sempre que precisamos.

Folha - Qual o balanço que o senhor faz do regime militar?

D. Ivo - As duas primeiras promessas dos militares eram até boas. Estavam fazendo uma revolução contra a subversão e a corrupção, coisa que todos nós queríamos. Mas logo depois vieram os exageros e começaram as prisões. Tivemos que ser contra. Qualquer um era chamado de subversivo.

Folha - O senhor acha que o papa, por causa do seu estado de saúde, deveria se aposentar?

D. Ivo - Ele já disse que não se sente no direito de se aposentar. A cabeça dele está boa. É impressionante a carga de trabalho diário que ele assume. Acho até um exemplo de como uma pessoa idosa pode significar muito na situação atual do mundo e da Igreja. Ele é muito presente ainda.

Folha - O que ficou do período de renovação da igreja do Brasil, como Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (Cebs)?

D. Ivo - A Teologia da Libertação não morreu. O que houve foi um reajustamento. A Teologia da Libertação não podia ser só no sentido econômico e político. Assim, acho que ela amadureceu.

As Cebs também. Foi um aparecimento importante. Aí também se avançou no sentido de ver que as comunidades de base deveriam ser comunidades integrais, que abranjam também aspectos morais, litúrgicos, e não só político ou partidário. São fenômenos novos que exigiam ajustamentos.

Folha - O senhor acha que o problema da corrupção melhorou ou piorou no Brasil?

D. Ivo - Acho que ainda estamos muito corruptos. Um país de tanta riqueza, como chega uma hora que não tem mais dinheiro? Uma tristeza.

Folha - O senhor está de acordo de o combate à fome ser a prioridade zero do próximo governo?

D. Ivo - Fome é também uma consequência da falta de uma boa política de produção, de distribuição e das injustiças sociais. Nós lançamos no ano passado, pela CNBB, um grande mutirão nacional para a superação da miséria e da fome. Com fome ninguém vale nada, não tem perspectiva de vida. Mas tem de olhar todo o conjunto.

Folha - Como o senhor vê a questão dos evangélicos?

D. Ivo - Eu quero ter sempre o espírito ecumênico. Agora, ter bancadas por religião, eu não sou a favor. A Igreja Católica já teve, em décadas passadas, a Liga Eleitoral Católica [criada em 1933" e a experiência não foi boa.

Folha - O que o senhor acha da política do governo Bush de combate ao terrorismo?

D. Ivo - Aquilo é um erro dele insuportável. Achar que ele é polícia do mundo, não pode ser. Ninguém quer o terrorismo, mas o método que está aí, a guerra, meu Deus! E no fim, o homem que queriam pegar não pegaram. E agora é o Saddam Hussein. O que é isso? Está tudo errado.

 

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