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16/12/2002 - 06h25

"Precisamos de ajuda na Amazônia", diz Marina Silva

RAQUEL ULHÔA
da Folha de S.Paulo, em Brasília

A futura ministra do Meio Ambiente, senadora Marina Silva (PT-AC), 44 tem uma relação com a natureza que supera o discurso. Por questões de saúde, usa, preferencialmente, roupas feitas de algodão e não come carne vermelha, crustáceos nem derivados do leite. Seu hobby é desenhar e montar colares e brincos de produtos orgânicos -semente, coco e casca de limão e laranja desidratada. Tem 40 modelos desenhados, que pretende fazer um dia.

Na década de 70, em Rio Branco, quando militava em movimentos sociais, fez parte de um grupo de teatro amador que chamava "Semente". O grupo construiu um teatro, que recebeu o nome de "Teatro Horta".

Vítima de cinco malárias, três hepatites, contaminação por metais pesados e leishmaniose -"doença típica dos pobres da Amazônia"-, hoje Marina tem alergia ao leite e seus derivados, à carne vermelha e aos crustáceos. E roupas de lã lhe trazem problemas respiratórios.

Ex-seringueira e analfabeta até os 14 anos, Marina sabe o que lhe diria o amigo e mentor político Chico Mendes, líder sindical do Acre morto em 98, se estivesse vivo para vê-la ministra do Meio Ambiente. "Ele me daria um abraço carinhoso, me olharia de lado e diria: "Nega velha, tu é danada'". Leia a seguir entrevista.

Folha - A sra. disse que sentiu um "frio na barriga" ao ver a confirmação do seu nome no ministério junto com a Celso Amorim. Por quê?
Marina Silva
- Em 1995, na primeira vez em que saí do Brasil, fui dar uma palestra em Nova York, na Semana da Amazônia, e o ministro Celso Amorim [então representante do Brasil junto à ONU" me recebeu de uma forma acolhedora, fora do padrão formal que tem nessa cultura protocolar de embaixada. Aí eu pensei: no dia em que o PT for governo, acho que a gente deve convidá-lo para ser o nosso ministro das Relações Exteriores.
Esse registro ficou. Quando o Lula anunciou, hoje [sexta", deu um frio na barriga. Digo: "Meu Deus, em 95, pensei aquilo e nunca falei a ninguém". Fiquei emocionada e contei para ele [Amorim", que também se emocionou.

Folha - Muito já se falou no seu passado de seringueira, empregada doméstica, alfabetizada após os 14 anos. Como uma mulher com esse passado se vê no poder, hoje?
Marina
- Quando o Lula anunciou fiquei superemocionada, porque há 17 anos o Chico [Mendes] foi para os EUA denunciar a destruição da Amazônia e, quando voltou, a pressão foi terrível. Ficamos isolados, sendo acusados de ser contra o progresso, o desenvolvimento. A mídia local nos pintava como demônios que queriam ver o Acre ficar no atraso.
Passa-se esse tempo todo, no mesmo país, e o Lula anuncia que aquela menina que estava lá com o Chico Mendes vivendo toda aquela pressão pode comandar a política ambiental do país.
É uma demonstração de que esse país mudou. E a própria história do Lula, também. É uma demonstração, primeiro, do avanço da nossa democracia. Segundo, da riqueza social e cultural e da capacidade fantástica que o ser humano tem de superar dificuldades. E é isso que precisa ser cada vez mais mobilizado no país.
A gente sempre pensa que, para fazer alguma coisa, precisa ter dinheiro. E precisa. Só que há um capital adormecido, latente, a que a gente não dá muita atenção, mas que, se mobilizado, organizado e processado, é muito maior do que o que a gente pode colocar com o dinheiro. É isso que está mudando o país e é isso que vai fazer o país mudar cada vez mais.

Folha - Qual é o maior problema da política ambiental do atual governo?
Marina
- É a falta de uma política ambiental integrada, que perpasse todas as ações do governo. Apesar dos esforços dos ministros, o Ministério do Meio Ambiente ficava isolado e era visto muito mais como um problema do que como solução.
Meu desafio é implantar uma política integrada. É preciso que mude a postura.
Existe uma relação de sobreposição de competências entre o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e o Ministério do Meio Ambiente. Uma política integrada vai potencializar a política ambiental.

Folha - Para evitar essa sobreposição de competência, a sra. pretende fortalecer o poder do ministério? Chamar para si todo o comando da política ambiental?
Marina
- Eu pretendo coordenar. Isso, com certeza. A mensagem do presidente Lula é clara. Ele sinalizou o tempo todo que neste governo a gente não vai ter políticas de ministérios, de ministros, nem de diretores. Vai ter uma política de governo. E eu gosto muito disso: gosto de construir processos.
O detalhamento de como isso vai se realizar seria prematuro de minha parte dizer. Mas os setores do próprio ministério têm de estar integrados, agindo de forma concertada. Acho que a sociedade vem sinalizando a necessidade de termos uma política ambiental que coloque o Brasil no lugar que ele precisa estar. Como um país que deve ter uma posição estratégica, pela importância que tem em termos de recursos naturais.

Folha - Como a sra. vê essa preocupação de outros países com a Amazônia, que aqui muitas vezes é vista como ameaça à soberania?
Marina
- O fato de a Amazônia ter a maior biodiversidade, a maior reserva de água doce, a maior floresta tropical, e ter uma importância estratégica no que concerne ao equilíbrio global do planeta já diz que, é claro, todo o mundo tem de ser preocupar com ela. A destruição da Amazônia tem implicações que não ficam restritas ao Brasil. Tem consequências do ponto de vista global.
E, se nós temos a responsabilidade de preservar a Amazônia, não pode ser debitado a nós a responsabilidade de fazermos isso sozinhos. Precisamos de ajuda. Só que essa ajuda não pode vir nos pautando. Nós é que temos de pautar a ajuda que queremos e dizer que projetos queremos e quais são os eixos basilares dessa cooperação. E, se fazemos o dever de casa em relação à Amazônia, com certeza essa insegurança [ameaça à soberania" baixa muito.

Folha - E o governo Fernando Henrique Cardoso não fez?
Marina
- Olha, se eu disser que não fez nada, estarei sendo injusta. Eu diria que fez, mas foi insuficiente. Fez, mas em muitos aspectos de forma ainda pontual, piloto, sem dar escala. Por exemplo, algumas experiências-piloto em manejo florestal, controle de queimadas e agricultura familiar... Há um conjunto de experiências que estão dando certo das comunidades e até mesmo de setores de grandes empresas, feitas com apoio do governo.
Não vou desconsiderar tudo isso de jeito nenhum. Sou uma mulher de processo. Aquilo que é bom, correto, tem de ser aprofundado. Agora, precisamos ter uma política para fazer esse processo, que é a questão da transversalidade, do controle social, para o desenvolvimento sustentável.
É preciso ter uma política ambiental que, do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, comece a transformar essas experiências positivas em políticas públicas de desenvolvimento.

Folha - A sra. nasceu e viveu no seringal até os 17 anos, quando foi para Rio Branco morar num convento de freiras. Quando a sra. abandonou o sonho de ser freira?
Marina
- Desisti porque descobri a Teologia da Libertação. As irmãs falavam muito mal do pessoal da Teologia da Libertação, da CPT [Comissão Pastoral da Terra], do Chico Mendes. Foi dando uma curiosidade! Aí, um dia, eu estava na missa e tinha um cartaz, bem no cantinho, que dizia "Curso de formação política da Comissão Pastoral da Terra com a presença de Chico Mendes". E pensei: vou me inscrever nesse curso. Foi aí que conheci Chico Mendes [com quem fundou a CUT no Acre e atuou nos seringais].

Veja também o especial Governo Lula
 

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