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19/12/2002 - 07h30

"Brasil velho" produz turbulências em série

JOSIAS DE SOUZA
da Folha de S.Paulo, em Brasília

Em meio ao caso Sivam, primeiro escândalo de vulto de sua gestão, Fernando Henrique Cardoso atacou, reservadamente, o "espírito de corvo" que costuma frequentar os corredores do governo. Referia-se a "semeadores de intrigas", pessoas que cultivam "a mania de ver podridão em tudo". Era novembro de 95. FHC vira-se forçado a afastar o chefe do cerimonial da Presidência, Júlio César Gomes dos Santos, e o ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra, fulminados pela proximidade com representante da firma norte-americana Raytheon.

O motor do escândalo era um grampo telefônico urdido pelo então presidente do Incra, Francisco Graziano. Daí a referência à ave de grasnido áspero. Alusão a poema de Edgar Allan Poe (1809-1849). Os versos falam de um corvo que entra na casa do narrador e responde a todas as perguntas assim: "Nunca mais".

Os escândalos proliferaram. Um se sobrepondo ao outro. Fitas do BNDES, compra de votos da reeleição, caixa dois da campanha presidencial, assaltos à Sudam... Era como se a realidade desejasse impor uma máxima inversa à do corvo de Allan Poe: "Sempre mais".

Assim como a fita do Sivam, também o grampo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) teve produção caseira. Foi tramado e executado no ambiente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Divulgado, trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos da privatização das telefônicas.

Soube-se que o maior negócio da República fora trançado numa atmosfera de alto risco ("no limite da irresponsabilidade"), em meio a um linguajar raso ("se der m..., estamos juntos") e com pitadas de truculência ("temos de fazer os italianos na marra").

Soube-se ainda que Fernando Henrique Cardoso ("a bomba atômica"), quando consultado ("a idéia de que podemos usá-lo aí para isso"), assentiu ("não tenha dúvida, não tenha dúvida"). Produziram-se duas baixas, até hoje lamentadas pelo presidente: os expurgos de Luiz Carlos Mendonça de Barros do Ministério das Comunicações e de André Lara Resende da presidência do BNDES.

Na raiz de alguns outros escândalos esteve uma contradição que, sob FHC, ganhou viço: ele se propôs a produzir um Brasil novo, mas foi buscar apoio em estruturas políticas de um Brasil velho. Dividiu o governo em dois. Um "sério". Outro nem tanto.

Manteve "a salvo" pastas como Educação, Saúde e Fazenda. O que não impediu, mesmo aí, o surgimento de casos tão rumorosos quanto o episódio do socorro ao Banco Marka, de Salvatore Cacciola, sobre o qual ainda se debruça o Ministério Público.

DNER e Sudam
Levou ao balcão ministérios como Integração Nacional e Transportes. Ativaram-se ali as principais usinas de escândalos. O DNER e a Sudam entre elas. Só nesta última autarquia, a malversação sorveu quantia superior a R$ 2 bilhões.

Em matéria de corrupção, o presidente julga-se vítima de uma torpeza: a veiculação do chamado Dossiê Cayman, que se comprovaria falso. Qualifica de "ousadia inaceitável" a difusão da suspeita de que poderia manter conta milionária no exterior.

Desrespeitou-se, na sua opinião, não apenas a sua biografia, mas a do governador Mário Covas, a do senador José Serra e a do ministro das Comunicações Sérgio Motta. Queixa-se especialmente da Folha. Embora o jornal tenha tido a precaução de apresentar o papelório como algo apócrifo e pendente de confirmação.

Só uma coisa consegue aborrecer mais FHC do que a lembrança do fatídico dossiê: a acusação de que foi leniente com a corrupção. "Não roubou, mas deixou roubar", nas palavras do ex-tucano Ciro Gomes. "O governo jamais obstruiu investigações", refuta o presidente. "Apurou-se tudo o que veio à tona." Meia verdade.

Embora o atrabiliário procurador Luiz Francisco de Souza, consorciado com a imprensa, tenha fracassado em sua tentativa de estabelecer vínculos monetários entre o juiz Nicolau dos Santos Neto, do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, e o ex-auxiliar palaciano Eduardo Jorge, muito do que foi escarafunchado sob FHC deveu-se à ação de procuradores da República.

No caso da Sudam, por exemplo, um comitê de procuradores virou a autarquia do avesso. Apontado como chefão do esquema, o hoje deputado eleito Jader Barbalho encontra-se indiciado em dois processos, em Tocantins e em Mato Grosso.

A favor de FHC há o fato de que, uma vez lancetados os tumores, não travou as engrenagens investigativas do governo, postas a serviço do Ministério Público. A Receita Federal é o melhor exemplo.

Receita Federal
No momento, o Fisco realiza uma devassa na empresa Lunus, de propriedade da ex-governadora do Maranhão Roseana Sarney e do marido dela, Jorge Murad. Em uma batida policial organizada como subproduto da apuração na Sudam, encontrou-se no escritório da Lunus R$ 1,4 milhão. "É dinheiro de campanha", sustenta Murad. Concluído o trabalho dos auditores fiscais, talvez precise dar mais explicações.

Acionada pela Procuradoria da República, a Receita também audita declarações de rendimentos de pessoas que coletaram dinheiro para o caixa dois da campanha do próprio Fernando Henrique Cardoso. "Nunca sofri nenhum tipo de pressão", testemunha o secretário Everardo Maciel, em diálogos reservados.

Contra FHC pesa a evidência de que manobrou para obstruir tentativas de instalação no Congresso de comissões parlamentares de inquérito. Escândalos foram à cova com vida. Entre eles o da compra de votos e o do grampo do BNDES. O mesmo aparato fisiológico que injetou desvios em setores da máquina pública forneceu a FHC a maioria congressual que esmagou as tentativas de apuração sob holofotes.

Muitos escândalos, em consequência, sobreviverão ao atual governo. Alguns ainda recheiam os escaninhos do Judiciário. De resto, tão cedo FHC não vai se livrar de um fantasma que o ronda: o receio de que sua voz surja, de uma hora para outra, em eventuais diálogos dos grampos do Sivam e do BNDES. Teme ter mantido com os grampeados conversas que ainda não vieram a público. Nada desabonador, sustentam os seus auxiliares.

No momento, FHC tenta assegurar para si o chamado foro privilegiado. Acha que, quando questionado por atos que praticou como presidente, deve ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e não por juízes de primeira instância. A tese ganha adeptos no Congresso. Antes contrário, o PT agora é a favor.
 

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