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30/12/2002 - 05h08

"Fim da mobilidade social ajudou Lula", diz Florentino

RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo

"O pau-de-arara que levou o menino Luiz Inácio da Silva do interior de Pernambuco para São Paulo pertence muito mais ao passado do que se imagina. Hoje você pode fazer a mesma rota, saindo de Garanhuns, em ônibus, com ar condicionado e televisão. Só que você vai do nada para lugar nenhum."

A frase ilustra o argumento do historiador Manolo Florentino, 44, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), de que a grande mobilidade social existente no Brasil ao longo do século 20, que garantiu a adesão de ricos e pobres a uma das sociedades mais desiguais do mundo, há duas décadas foi bloqueada pela revolução tecnológica e praticamente acabou.

O historiador enumera consequências importantes dessa mudança estrutural da sociedade brasileira:

1) Diminui a adesão dos pobres, que não podem mais ascender socialmente, à ideologia de privilégios do status quo.

Corta para 2002: Luiz Inácio Lula da Silva pôde ser eleito;

2) A identidade do Brasil como país miscigenado fica ameaçada;

3) A elite pela primeira vez procura aderir à cidadania; antes, diz o historiador seguindo um raciocínio do geógrafo Milton Santos, só os pobres eram cidadãos.

Leia a seguir a entrevista concedida por telefone à Folha.

Folha -Como é que se pode explicar o sucesso da sociedade brasileira na manutenção de níveis constantes de desigualdade?

Manolo Florentino - Posso falar da [explicação que a] historiografia atual [pode dar]. A idéia é tentar imaginar que a exclusão no Brasil é alguma coisa por meio da qual se constitui a hierarquização [do restante] da sociedade.

Veja, por exemplo, o caso da escravidão. É uma visão ingênua que o objetivo da sociedade escravista era reproduzir senhores e escravos. Não, não é.

Você se utiliza da escravidão para reproduzir a diferença social entre os homens livres. Dizer que o objetivo fundamental dessa sociedade é reproduzir senhores e escravos é mais ou menos óbvio. O novo é pensar que a escravidão serve para marcar a diferença entre os homens livres, com a renda [maior ou menor] que eles expropriam dos escravos.

O que há de curioso é que essa mentalidade por meio da qual a hierarquização se reproduz por meio da exclusão, essa cultura prevalece até hoje.

[O geógrafo] Milton Santos, antes de morrer, lançou uma tese que me pareceu genial. Ele diz que, no Brasil, só os pobres são cidadãos. As classes médias e as elites não o são. Porque elas buscam viver por meio de privilégios. A busca desse privilégio, de certo modo a busca por viver fora da cidadania, é um requinte de permanência cultural muito forte de uma sociedade que secularmente se reproduz por meio da exclusão.

Me parece uma tese genial porque inverte toda a discussão que a gente tem. A gente quer transformar o pobre em cidadão, e a tese do Milton diz o oposto: quem tem que se transformar em cidadãos são as classes médias e as elites.

Folha - E como é que numa sociedade com tantas diferenças, o país conseguiu manter uma grande estabilidade social?

Florentino - Não teríamos uma sociedade se reproduzindo de maneira tão excludente e ao mesmo tempo com alto grau de estabilidade se não tivéssemos o comprometimento de todos, ricos e pobres, com a exclusão social.

O que faz com que todos os brasileiros, até pouco tempo atrás, tenham se comprometido visceralmente com a exclusão? É que essa sociedade era até pouco tempo uma sociedade em que as possibilidades de ascensão social eram muito intensas. Os mecanismos de mobilidade social eram bastante azeitados, a ponto de você ter uma mobilidade infinitamente superior a qualquer outro país, digamos, da Europa.

À medida que o pobre ascende socialmente, ele vai falando a linguagem do status quo e se comprometendo com a exclusão. Sociologicamente, uma pista interessante é estudar os mecanismos de ascensão social ao longo de toda a história brasileira e, sobretudo, qual o efeito do relativo travamento disso nas últimas décadas.

Folha - Por que se deu esse travamento?

Florentino - Um dos mecanismos mais comuns de ascensão social no Brasil até 20 ou 30 anos atrás era o trabalho barato. Com a revolução tecnológica que a gente vive, o que se requer não é mais trabalho barato, apenas. O sujeito tem que ter um mínimo de especialização. Isso significa que o trabalho em si já não afiança a ascensão de um indivíduo. Não ascendendo, os níveis de aderência e comprometimento com a exclusão têm diminuído.

Você veja as milhares de biografias que temos por aí. O sujeito começa a ralar pra burro, vem do Nordeste, abre uma garagenzinha, depois se torna mecânico... Pode não vir a ficar rico, mas efetivamente foge da linha de pobreza. Eventualmente pode até ficar rico, temos inúmeras biografias dessa espécie. É isso que está sendo travado nos últimos 20 anos.

Folha - A eleição do Lula tem algo a ver com isso?

Florentino - Tem. Ela é a expressão dessa insatisfação, num certo sentido. A eleição do Lula é a expressão dessa falta de aderência com a reprodução do status quo.

O Brasil fez um dos maiores esforços de readaptação produtiva nos últimos 20 anos. Essa década perdida implicou isso. Uma adaptação tecnológica como poucas vezes se deu em países outros. Isso significa que a produtividade do trabalho brasileiro aumentou muito e isso não foi repassado para os salários. O Lula é a expressão disso e, nesse sentido, [sua eleição] é alguma coisa mais ou menos lógica.

Folha - E como é que o sr. vê as possibilidades de o governo do PT responder a isso?

Florentino - Torço para que dê certo. Veja: a política ressignifica sempre os atores. Compare o Lula com o [José] Serra [PSDB] no período eleitoral. O Serra tentou passar a idéia de que encarnava a mudança, mas trazia na testa o selo da continuidade de um projeto inexoravelmente ancorado no desemprego. Deu com os burros n'água. O Lula, ao contrário, capitalizou o sentimento de mudança.

Passada a eleição, o que se vê? É o Lula quem tenta nesse momento travestir-se de continuísmo. Ele está muito claro nesse ponto. Está fazendo isso para poder mudar alguma coisa.

É um paradoxo, mas mostra algumas coisas. Em primeiro lugar, um enorme profissionalismo. Ele tem sido cada vez mais profissional, se vendo, corretamente a meu ver, como presidente dos brasileiros, e não dos militantes do PT.

Folha - O sr. acha que agindo dessa forma ele pode conseguir concessões maiores?

Florentino - Certamente. Porque ele está incluindo em um grande pacto social todos os brasileiros. Veja os caras que estão sendo escolhidos para o ministério. Ele poderia fazer uma escolha sectária, já que foi eleito com cinquenta e tantos milhões de votos. Mas não, está dialogando com todas as camadas da sociedade.

Um projeto que parte de baixo para cima, e que ao mesmo tempo assume o país em toda sua complexidade _isso é muito profissionalismo e serenidade. Só posso torcer para que dê certo.

Folha - E por que se poderia esperar que a elite que está sendo chamada para esse pacto aceitaria aderir?

Florentino - Não sei se vai aderir. Historicamente, a elite não adere a coisa nenhuma, já que ela sempre se reproduziu por meio da exclusão. Mas há coisas novas. Por exemplo: qual era a reação da Fiesp em 89 em relação ao Lula? A satanização absoluta. Agora, não. Agora Lula é recebido e com ele se dialoga de igual pra igual. Essa não-satanização deve significar alguma coisa importante.

Talvez mais importante que isso, do ponto de vista da novidade, seja a maneira como está se dando a transição. O reforço das instituições. Nunca se viu tanto profissionalismo num processo de transição política neste país. Muitos atores sociais e políticos neste país poderiam estar pondo água...

Folha - Se historicamente a elite não aderiu a coisa nenhuma, por que adere agora?

Florentino - Não faço a menor idéia. Em última instância, a mudança seria a elite e a classe média querendo se transformar em cidadã, e não apenas vivendo de privilégios.

Folha - Partindo do que disse o Milton Santos...

Florentino - Exatamente. Quando uma Fiesp não demoniza e reforça as instituições, em última instância ela se põe na posição de cidadã. As elites estão se colocando nessa posição. Agora, daí a resgatar a dívida social, não tenho a menor idéia [se será possível]. Isso é trabalho de Pitonisa.

Folha - Dá para dizer se o fato de as elites buscarem a cidadania tem algo a ver com pressões sociais dentro das cidades, algo a ver com a violência?

Florentino - Nas últimas pesquisas feitas sobre isso, quando se perguntava aos membros das elites estratégicas _não só econômica, mas membros das elites política, empresarial, sindical_ qual era o grande problema do Brasil, eles diziam que era a violência. Na verdade, eles não percebiam que a violência era reflexo da situação social. Isso é de uma pesquisa do Iuperj feita em 94, 95.

Hoje, passados sete anos, talvez eles pudessem apontar para a questão social. Em princípio a pobreza continua bastante naturalizada na cabeça da classe média e das elites brasileiras. Mas algo está mudando. A gente vê pela atuação dela agora.

Folha - O presidente Fernando Henrique Cardoso já disse que a eleição do Lula é uma prova da mobilidade social no país...

Florentino - Ao contrário do que diz o presidente, que a mobilidade, que a vida atualmente é um campo aberto, não é. A eleição do Lula sugere que essas possibilidades tenham se estreitado, e que tenham diminuído portanto as zonas de aderência política e cultural à reprodução do status quo excludente.

Sempre repito: o pau-de-arara que levou o menino Luiz Inácio da Silva do interior de Pernambuco para São Paulo pertence muito mais ao passado do que se imagina. Hoje você pode fazer a mesma rota, saindo de Garanhuns, em ônibus, com ar-condicionado e televisão. Só que você vai do nada para lugar nenhum. O cara sai do Nordeste hoje sem esperança.

Folha - Havia essa possibilidade de ascensão. Ela era distinta para brancos e negros?

Florentino - O que mais impressiona no Brasil, quando você se dedica a pensá-lo, é exatamente ele ser portador dessas duas características que são a exclusão e a miscigenação. Aparentemente, elas configuram um atentado a toda química social. Você exclui aquele com quem você se mistura, e você se mescla com quem você exclui. Como é que se resolve esse paradoxo? Vendo os processos de ascensão social. O sujeito, quando é negro e ascende, vai levando a sua cor para estratos mais elevados da sociedade, e a cultura brasileira é tão original que faz com que ele vá embranquecendo, perdendo a cor.

Ora, se você trava a mobilidade social, em última instância você está travando o processo de miscigenação. O processo de levar o negrume da nossa cor aos estratos brancos. O que está em jogo é a própria identidade mestiça deste país. Não é um problema só socioeconômico.

Os pobres negros estão vendo suas possibilidades travadas. Isso pode acirrar o conflito étnico.

Folha - Após a vitória do Lula, falou-se, sobre sua relação com a população, em messianismo e populismo. Faz sentido esse tipo de comparação?

Florentino - Só há populismo quando rico resolve se meter com o povo _historicamente é assim que ele se produz. No caso específico do Lula isso é impossível, por razões que são óbvias. Também não vejo messianismo. O que vejo é muita esperança, que está sendo confundida... Talvez pelo próprio estilo do Lula que, convenhamos, não é dos mais finos.

Folha - Isso pode se dever ao contraste com o estilo do FHC?

Florentino - Não tenha dúvida. O Lula vai precisar mais do Duda Mendonça do que ele imagina. O marketing político, importantíssimo para a eleição, vai ser fundamental agora. Exatamente para dirimir esses problemas de como a imagem do presidente chega às pessoas.

Veja o choro do Lula. Da maneira como tem sido trabalhado é muito emocionante. Confesso, vi o Lula chorando [na diplomação], fiquei emocionado. Você também não ficou? Daí para resvalar numa coisa piegas é um limite muito tênue.

Folha - Se não resvala para o piegas, ajuda o Lula no poder?

Florentino - Claro. Ele simplesmente aparece como uma pessoa eivada de bons sentimentos, muito humana. Ao contrário do nosso amigo FHC, que sempre manteve uma distância muito grande, até por formação.

Folha - Se resvalar, atrapalha?

Florentino - Se resvalar para o piegas, não tenha dúvida. É o caminho mais curto para tentarem passar a idéia de que o sujeito não sabe se comportar e não tem a serenidade suficiente para o exercício do cargo. Se ele desmonta a cada momento tênue como o do recebimento de um diploma. É questão de estrutura emocional mesmo. Isso não foi colocado ainda. Ainda bem que não foi e espero que não seja.
 

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