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23/02/2003 - 08h21

PF investiga elo entre quadrilha e juiz do STJ

JOSIAS DE SOUZA
da Folha de S.Paulo, em Brasília

A Polícia Federal investiga há três semanas um esquema de "negociação de decisões" no STJ (Superior Tribunal de Justiça). A ação nasceu de uma escuta telefônica autorizada pela Justiça. A escuta pôs sob suspeita o advogado Erick José Travassos Vidigal, 28. É filho do ministro Edson Vidigal, vice-presidente do STJ.

A investigação foi apelidada de "Operação Dilúvio". A Folha obteve cópias de documentos secretos e de fitas com conversas captadas pelo grampo.

O material foi produzido pela superintendência da PF em Mato Grosso. As cifras mencionadas vão de US$ 100 mil (preço de um habeas corpus) a R$ 2 milhões (valor de um contrato de "assessoramento" nos tribunais superiores de Brasília).

O grampo que conduziu a polícia ao filho do ministro Vidigal foi feito sob supervisão judicial. Começou nos últimos dias de janeiro, no município mato-grossense de Rondonópolis. A apuração não visava o Judiciário.

Para surpresa dos agentes federais, a escuta telefônica captou referências a um personagem que desconheciam. Era tratado nos diálogos ora como "Erick", ora como "filho do velho". No curso das investigações, a PF descobriu que se tratava do filho do ministro Edson Vidigal.

Investigava-se uma das mais vigorosas quadrilhas criminosas em funcionamento no país. Opera, desde Mato Grosso, sob o comando de um ex-policial civil: João Arcanjo Ribeiro. É conhecido como "comendador".

Arcanjo Ribeiro está foragido. É caçado dentro e fora do país, em megaoperação que mobiliza a PF, a Interpol e até o FBI norte-americano. Pesam contra ele acusações variadas -da exploração de máquinas caça-níqueis à encomenda de assassinatos, do comércio ilegal de armas ao tráfico de diamantes, da sonegação de impostos à lavagem de dinheiro.

Ele é acusado do assassinato do empresário Sávio Brandão, 40, dono do jornal "Folha do Estado", o segundo maior de Mato Grosso, morto a tiros em frente a sua empresa em setembro.

Grampeou-se, primeiro, um lobista chamado Samuel Nascimento da Silva. Mora em São José do Rio Preto (SP). Viaja com frequência a Cuiabá (MT). Presta serviços à rede de advogados mobilizada em torno do "comendador". O telefone grampeado é um celular do tipo pré-pago.

Habeas corpus

A partir de 20 de janeiro, o dono do aparelho pôs-se a disparar e receber telefonemas de Brasília.

Ouvindo os diálogos de Samuel, os agentes federais perceberam que giravam em torno da negociação de habeas corpus. É um tipo de decisão judicial que serve para liberar presos ou pessoas ameaçadas de prisão. Os beneficiários seriam o fugitivo Arcanjo Ribeiro e integrantes de sua quadrilha, sete dos quais trancafiados em cárceres de Mato Grosso.

Nas gravações, o nome de Erick Vidigal é mencionado como elo entre a quadrilha e o gabinete de seu pai. Nem a voz de Erick nem a do pai aparecem nas fitas. Ambos são, porém, mencionados à farta.

Uma das conversas envolvia a concessão de habeas corpus para libertar Luiz Alberto Dondo Gonçalves. Foi ao cárcere sob a acusação de ter atuado como contador dos negócios escusos do "comendador" Arcanjo. O caso repousava sobre a mesa do ministro Edson Vidigal. Como vice-presidente do tribunal, ele integra a chamada "corte especial", um colegiado de 21 juízes, entre dirigentes da Casa e ministros mais antigos.

Mas era janeiro. O Judiciário estava em recesso. De plantão, Vidigal ocupava-se dos casos urgentes. Entre eles o pedido de liminar em favor de Dondo Gonçalves.

Na troca de telefonemas interceptada pela Polícia Federal, a quadrilha do "comendador" Arcanjo mostra-se disposta a pagar US$ 100 mil por uma decisão simpática de Vidigal.

Negócio supostamente acertado com Erick Vidigal. Em 22 de janeiro de 2003, porém, o ministro Vidigal indeferiu o pedido.

A quadrilha foi informada em primeira mão. "O Erick tá vindo aqui. É o Erick, o filho do velho lá, entendeu? Ele tá vindo trazer a cópia [do despacho" aqui", diz um dos prepostos da quadrilha mato-grossense, falando de Brasília.

De acordo com o conteúdo da escuta, o ministro teria mandado um recado pelo filho: da forma como fora pedida, a libertação do preso iria ferir jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal). Soaria inexplicável.

Pedido semelhante havia sido feito ao TRF (Tribunal Regional Federal), instância judicial que antecede o STJ. O TRF negara a liminar, postergando a análise do mérito. Só depois de um julgamento final no Tribunal Regional é que o pedido de nova liminar poderia ser protocolado no STJ.

Erick Vidigal passa a negociar com a quadrilha, conforme os registros da escuta, um pacote de assessoramento "mais amplo".

"[...] Aí ele [Erick] quer dois milhões", registra um trecho do grampo. "Dá um, deixa um armazenado aqui, depositado num cofre aqui, do Banco do Brasil, e na segunda-feira vem, pega e paga o restante. E depois o restante vai pagando conforme o serviço que vai sendo prestado. E aí faz um contrato de assessoria nos tribunais superiores em Brasília, de tudo o que chegar aqui [...]."

Como não há menção à unidade monetária, a PF não sabe se a cifra foi expressa em reais ou em dólares. Um dos beneficiários da transação seria o próprio Arcanjo Ribeiro, chamado nas gravações pelo codinome de "passarinho". Uma referência ao símbolo das empresas que o "comendador" do crime mantém em Mato Grosso e na Flórida (EUA): um colibri.

Ouve-se no grampo: "[...] Então a do passarinho é o seguinte: ele precisa entregar, falar pro advogado aqui pra entregar a peça pra ele [Erick] analisar [...]. Manda ele entregar em disquete amanhã, o mais tardar. Protocola na sexta-feira e ele concede na segunda o do grande".

Anote-se, em benefício de Edson Vidigal, que não há indícios de que a assinatura do juiz tenha sido aposta a decisões judiciais remuneradas pela quadrilha de Arcanjo Ribeiro. Trechos das gravações apontam desavenças em torno de valores supostamente cobrados. Os prepostos do "comendador", tudo indica, regatearam o preço.

Viagem à Cuiabá

Um detalhe complica a situação dos Vidigal. Guiando-se pelas gravações, os agentes federais farejaram a passagem de Erick por Cuiabá. Deu-se entre a noite do dia 22 e a madrugada de 23 de janeiro. O filho do ministro Vidigal participou de reunião com lobistas e advogados do bandido Arcanjo Ribeiro. Conversaram madrugada adentro.

O envolvimento de Erick Vidigal com representantes do crime organizado joga gasolina numa fogueira que arde em Brasília desde o final do ano passado. O fogaréu da crescente infiltração de criminosos no aparelho do Estado.

Até aqui, o caso mais notório envolvia o deputado federal Pinheiro Landim (CE). Foi pilhado em outro grampo da Polícia Federal. Conversou diretamente com traficantes de cocaína. Encontrou-se com eles.

Landim atuava, segundo a PF, no comércio de decisões judiciais. Servia-se da assessoria de Igor Santos da Silveira. Como Erick Vidigal, é filho de um magistrado, o desembargador Eustáquio Silveira, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), afastado do tribunal na última quinta-feira. O TRF abriu inquérito administrativo para apurar o envolvimento de Eustáquio e de sua mulher, a juíza federal Vera Carla Silveira, na venda habeas corpus para narcotraficantes.

De resto, as fitas que ameaçam o mandato de Landim enredaram um outro ministro, colega de Edson Vidigal no STJ. Chama-se Vicente Leal. É protagonista de uma sindicância aberta no tribunal, ainda inconclusa. Antes da proclamação dos resultados, o STJ vê-se na contingência de abrir nova apuração interna.
 

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