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21/05/2003 - 19h21

Veja a íntegra do discurso de Lula em 1987

FERNANDO RODRIGUES
da Folha de S.Paulo, em Brasília

Leia a íntegra do discurso do então deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva em 6 de setembro de 1987, em Aracaju. Na ocasião, Lula se posicionou contra o limite mínimo de idade para aposentadoria (48 anos para mulheres e 53 anos para homens).

O material, que também tem críticas ao então presidente da República José Sarney e à TV Globo, foi entregue ao jornalista Fernando Rodrigues da Folha de S. Paulo pelo deputado João Fontes (SE) e provocou mais uma crise entre o governo e os radicais do PT.

Íntegra conforme fita de vídeo distribuída pelo deputado federal João Fontes (PT-SE), em 20.maio.2003. O texto está transcrição "ipsis verbis" do que foi dito, não tendo sido processadas correções de nenhuma ordem.

"Companheiros, companheiros e companheiras de Sergipe. companheiros e companheiras de Aracaju: eu penso que vocês têm consciência de que nós estamos aqui nessa praça com um objetivo comum a vários partidos políticos desse país; eu penso que é importante a gente saber de que existe diferenças entre os partidos políticos que estão nesse palanque, e eu penso que é importante a gente aprender a entender de uma vez por todas de que cada briga que a gente faz em praça pública, a burguesia deita e rola às custas da burrice da esquerda desse país.

Eu acho que vai ter momento em que a gente vai debater entre nós mesmos, na hora em que a gente tiver que escolher cada partido o seu candidato, na hora que a gente tiver na rua, cada partido com seu candidato pedindo voto, a gente vai divergir. Mas hoje existe uma coisa sagrada para um conjunto de partidos políticos e para um conjunto de deputados. Eu queria que vocês prestassem atenção porque a coisa é mais séria do que cada um de vocês pode imaginar e a televisão nem sempre conta a verdade pra população; aliás, na maioria das vezes o povo não sabe da verdade.

Vejam vocês, vejam vocês: o povo brasileiro, a dona de casa o adolescente, o aposentado, o chefe de família, ele hoje está desacreditado em tudo, ele não acredita mais em nada: e por que que ele não acredita mais em nada? É porque muitas mentiras foram contadas para cada um desses 40 milhões de brasileiros, e na medida em que foi se acumulando um processo de mentiras, o povo chega em 1987 desesperançado, desacreditado e sem esperança em nada e ninguém.

E por que esse povo está sem acreditar? Porque, em primeiro lugar, mentiram pro povo quando disseram que a tal Aliança Democrática da Nova República ia dar certo; mentiram pro povo naquela campanha extraordinária das Diretas, quando o povo aqui de Aracaju veio pra rua dez vezes mais gente do que tem hoje, e depois meia dúzia de pessoas ao invés de se manterem firmes pra conquistar as diretas, preferiram nas caladas da noite trair esses 40 milhões de brasileiros e fazer com que as diretas fosse desacreditadas.

Traíram o povo brasileiro no primeiro Plano Cruzado, traíram o povo brasileiro no segundo Plano Cruzado, traíram o povo brasileiro no plano Bresser Pereira, e agora o povo está mais desacreditado ainda porque alguns vieram na rua prometer que a Constituinte iria resolver todos os problemas da população e hoje a gente percebe que a Constituinte também não vai resolver.

E porque que não vai resolver? Não vai resolver porque nós somos apenas cem ou cento e poucos deputados comprometidos com a luta desse povo e tem quatrocentos e cinqüenta representantes do poder econômico e que não estão a fim de fazer com que a Constituição garanta direitos ao nosso povo: e qual é os direitos que o nosso povo quer? O que o nosso povo está reivindicando de mais?

Nós hoje somos um país que temos um milhão e quatrocentos mil trabalhadores que perdem um pedaço da mão dentro das fábricas todo ano; nós hoje somos um país que morre um trabalhador a cada quarenta minutos por acidente de trabalho; nós hoje somos um país de dois milhões e meio de meninas de 10 a 15 anos de idade que são obrigadas a se prostituírem pra continuarem sobrevivendo em função da miséria causada pela política econômica; nós hoje somos um país de 13 milhões de brasileiros com problemas de doenças mentais; nós hoje somos um país com 13 milhões e meio de pessoas comendo menas comida, com menos de 1.400 calorias diárias, quando o mínimo necessário é 2.600.

Nós hoje somos um país aonde o Nordeste clama, como clamava há 50 anos, por indústria, por emprego, por reforma agrária, e não tem emprego, não tem indústria, não tem reforma agrária porque não tem vergonha na cara daqueles que governam esse país nos últimos 20 anos; nós hoje somos um país com praticamente 20 milhões de crianças abandonadas; nós somos um país com 16 milhões de analfabetos; nós somos um país aonde a história é contada pela Rede Globo de Televisão porque o senhor Roberto Marinho não faz outra coisa a não ser mentir para o povo.

Nós hoje somos um país aonde as nossas crianças não têm o direito de brincar como crianças, aonde as nossas crianças e a grande maioria das crianças da classe trabalhadora passam a semana em semana pedindo um doce pro pai e o dinheiro do pai não dá pra comprar esse doce; pedindo um guaraná pro pai e o dinheiro do pai não dá pra comprar um guaraná, porque nesse país miserável a classe trabalhadora ganha 2.200 cruzados por mês, e 2.200 cruzados por mês, 2.200 cruzados por mês não dá pra nenhum cidadão sobreviver.

Seria muito importante, e eu diria por demais importante pra classe trabalhadora, que ao invés do Sarney dar 250 cruzados em abono para a classe trabalhadora, pede pra mulher dele ir pro supermercado fazer surpresa, ele iria perceber que não dá pra comprar pra essa classe trabalhadora comer.

Nós somos um país aonde a grande maioria da classe trabalhadora brasileira que trabalha 30 anos, ao se aposentar pensando que vai descansar os últimos dias da sua vida com a sua mulher, ele percebe que a aposentadoria corrói e come mais de 50% do seu salário e ele é obrigado ou a arrumar um outro emprego ou a vender bilhete de loteria ou fazer bico na rua.

Um país que tem tudo, mas falta vergonha na cara das autoridades para poder administrar essa riqueza imperecível do nosso povo; nós somos um país aonde quem manda aqui, apesar de Tiradentes ter morrido pela nossa independência, a nossa independência ainda não chegou aqui porque ficou na conta dos banqueiros internacionais; porque um país que deve 110 bilhões de dólares não tem independência e nós sabemos que o governo brasileiro não tem alternativa, ele vai ter que escolher: ou ele enche o rabo dos banqueiros de dinheiro do nosso sangue, do nosso suor, e se ele fizer essa opção ele vai levar a classe trabalhadora a continuar passando fome, porque o dinheiro que ele tá pagando de juros aos credores internacionais daria pra construir 3 milhões e meio de casas populares; daria pra construir hospitais, daria pra construir ruas, daria pra construir escolas, daria pra matar a fome da maioria das nossas crianças que hoje mendingam na rua.

E a Nova República é pior do que a velha, porque antigamente na Velha República era o militar que vinha na televisão e falava, e hoje o militar não precisa mais falar porque o Sarney fala pelos militares ou os militares falam pelo Sarney. Nós sabemos que antigamente -os mais jovens não conhecem-, mas antigamente se dizia que o Ademar de Barros era ladrão, que o Maluf era ladrão; pois bem: Ademar de Barros e Maluf poderiam ser ladrão, mas eles são trombadinhas perto do grande ladrão que é o governante da nova República, perto dos assaltos que se faz.

E vocês, companheiros e companheiras, companheiras professoras e companheiros professores, companheiros trabalhadores e companheiras trabalhadoras, eles estão querendo pregar uma peça na gente, na Constituinte. Há 3 anos atrás os professores brasileiros fizeram uma luta memorável e conseguiram aposentadoria aos 25 anos de trabalho.

Hoje, no projeto de Constituição feito pelo Bernardo Cabral, ele está colocando a aposentadoria da mulher aos 30 anos de trabalho e ela só pode se aposentar quando tiver 48 anos de idade; a aposentadoria do homem, que hoje é de 30 anos com 80%, aos 35 com 100%, sem limite de idade, eles estão querendo impor um limite de idade; o trabalhador só vai se aposentar com 35 anos se tiver 53 anos de idade.

Ora, por que que eles querem fazer isso? Eles querem fazer isso porque sabem que a média de idade do povo brasileiro é uma média de idade muito baixa, possivelmente no Sul do país chega a 62 anos e no Nordeste possivelmente não chega a 55 anos; e eles querem criar o limite de idade para que a classe trabalhadora morra antes de se aposentar, e nós não poderemos permitir isso.

É por isso, companheirada, que nós estamos aqui pra reivindicar as eleições diretas para Presidente da República.

Nós não queremos as eleições diretas para trocar um homem por outro homem; não queremos eleições diretas para tirar o sicrano e botar beltrano; nós queremos eleições diretas pra tirar um segmento social e colocar outro segmento social; nós queremos as eleições diretas para tirar a burguesia e colocar a classe trabalhadora pra governar esse país; colocar a classe trabalhadora para poder mandar nesse país e pra determinar os direitos desse pais.

Mas quando a gente chega e vai verificar por que que o governo não tá fazendo nenhum benefício pro nosso povo? O governo com a maior cara de pau vai pra televisão e diz que não tem dinheiro; e não é verdade, dinheiro eles têm, porque agora mesmo o ministro da Previdência Social pegou 1 bilhão de cruzados e ao invés de aplicar no salário dos aposentados, comprou 328 apartamentos para 328 marajás em Brasilia.

O presidente da República ao invés de fazer açude, ao invés de fazer cacimba, ao invés de fazer poço artesiano ou fazer irrigação no Nordeste, vai gastar 2 bilhões e meio de dólares pra construir uma ferrovia, Norte-Sul, ligando a casa dele, no Maranhão, à casa dele. em Brasília.

É por isso, meus companheiros de Aracaju e meus companheiros de Sergipe, eu sou daqueles que sonham com outro país; eu sou daqueles que acham que o Brasil é extraordinário; eu sou daqueles que acham que o Brasil tem riqueza; o Brasil tem uma classe trabalhadora extraordinária; o Brasil é feito de uma sociedade da mais extraordinária formação política e da mais extraordinária índole. Entretanto, nós não temos Governo.

O Sarney, ora diz que manda..., mas não manda, quem manda é os milico; o Ulisses Guimarães ora diz que manda..., mas não manda, quem manda é os milico. E na briga do Sarney com Ulisses, quem manda mais ou quem manda menos, a classe trabalhadora se ferra e é a classe trabalhadora que paga o pato dessa incompreensão deles.

Eu acredito num país, eu acredito num país aonde as nossas donas de casas possam viver decentemente com seus maridos; num pais aonde as crianças tenham escola, num país que tenha creche, num país aonde as crianças possam brincar, possam correr, possam empinar papagaio, jogar bolinha de gude, aonde as crianças possam ser crianças.

Eu acredito num outro tipo de país, mas para que a gente tenha um outro tipo de país é preciso que a gente tenha um outro tipo de governo porque esse que tá lá não é governo, esse que tá lá, na verdade, é um impostor porque não chegou à Presidência da República pelo voto direto do povo; chegou à Presidência da República assaltando o poder.

É por isso, companheirada, que eu queria terminar dizendo pra vocês uma coisa muito importante; eu queria terminar dizendo pra vocês uma coisa que eu digo quase em todos os comícios: os militares desse país e o poder econômico desse país podem matar duas, duas ou três rosas, mas não conseguirão deter a chegada da primavera.

Muito obrigado, companheiros, e até a conquista das eleições diretas, se Deus quiser."

Sites relacionados
  • Veja o site do jornalista Fernando Rodrigues

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